Adelson França Júnior*
“Ano novo, vida nova” – diz o ditado popular, que é levado muito a sério pelos educandos e educandas da Educação de Jovens e Adultos. Embora a vida não siga diretamente os marcos do ano civil, é muito comum que esses sujeitos da EJA se mobilizem para retomar seus estudos no começo de um novo ano. Procurar uma escola para se matricular após ter estado anos fora dela (mesmo que dentro, no caso dos/as adolescentes) é uma atitude audaciosa. Movimenta, além da coragem, a esperança. Mas não uma esperança vulgar. A esperança do verbo esperançar, e não do verbo esperar, como bem diz nosso querido Paulo Freire. A esperança que incita atitudes para a mudança. “A esperança é um condimento indispensável à experiência histórica, sem ela não haveria história, mas puro determinismo. Só há história onde há tempo problematizado e não pré-dado, a inexorabilidade do futuro é a negação da história” (FREIRE, 1996, p. 81).
Vale lembrar aqui que, movida por essa esperança, a retomada dos estudos não significa um retorno ao passado. Não se trata de correr atrás do prejuízo. Essa retomada audaciosa e esperançosa está vinculada ao tempo presente. A corrida não é atrás de algo. Na verdade nem é uma corrida, é uma caminhada. Em frente, enfrentando o que for necessário na busca do direito à escolarização. Os tempos da EJA (e da vida) não são lineares como temos sistematicamente aprendido.
Há também um ditado Iorubá, recentemente relembrado no belíssimo filme documentário “Emicida: Amarelo – É Tudo Pra Ontem”, que nos desloca da lógica linear a que estamos acostumados: Exu matou um pássaro ontem, com uma pedra que só jogou hoje. Nessa perspectiva, passado, presente e futuro se constituem num só momento, o da ação. Já na mitologia grega há duas interessantes figuras que indicam diferentes relações com tempo, Cronos e Kairós.
Cronos era o rei dos titãs, que devorava seus filhos logo que nasciam. Assim como o tempo devora destinos e segue vorazmente em sua linha reta sem descanso. Não havia exceções. Até que foi enganado por sua esposa-irmã Reia que, para poupar seu terceiro filho, trocou o bebê por uma pedra, que foi imediatamente engolida. A pressa para a manutenção da linha temporal, passando rapidamente do presente ao futuro, fez com que Cronos não percebesse o que estava devorando. Mais tarde, o filho não devorado, Zeus, retornou para derrotar seu pai e derrubar sua imposição tirânica.
Kairós era outra divindade mitológica grega, filho de Zeus e, portanto, neto de Cronos. Aparecia sempre representado nu, com apenas um cacho de cabelos compridos, e se deslocava de forma extremamente veloz. Para agarrá-lo era necessária grande concentração em sua passagem. A noção grega de tempo relacionado a Kairós tinha uma perspectiva qualitativa, vinculando-se ao momento oportuno. A oportunidade carecia de uma ação com apurada consciência de momento. Dessa maneira, as noções de futuro e passado ficavam apagadas e a relação com Kairós só podia se construir no presente, com a cuidadosa percepção do contexto, o que nos leva novamente a Paulo Freire.
O patrono da educação brasileira, em sua obra primordial, de 1964, denominada Pedagogia do Oprimido, abre sua análise crítica sobre a relação histórica entre opressores e oprimidos com uma dedicatória cirúrgica, que revela de antemão todo o espírito da obra, na seguinte construção magistral: “Aos esfarrapados do mundo e aos que neles se descobrem e, assim descobrindo-se, com eles sofrem, sobretudo, com eles lutam” (FREIRE, 1981, p. 17). Nesta epígrafe, e em todo o livro, o exercício de leitura do contexto é a tônica. E mais, a partir dessa leitura de mundo, lutar para a escrita de novos textos e contextos. Ao reler, coletivamente, o passado e o futuro das relações opressoras, Freire nos indica a importância da ação cultural no presente. É essa mesma ação que ele diz estar contida no verbo esperançar. A ação que movimenta sujeitos e coletividades em prol da mudança do hoje e, por conseguinte, do ontem e também do amanhã.
A Educação de Jovens e Adultos talvez seja o tempo-espaço educativo mais apropriado para a vivência desta desconexão linear temporal. Afinal, o sujeito dessa modalidade, esfarrapado do mundo, escancara a necessidade da centralidade da ação, presente, que muda o passado e o futuro, individual e coletivamente.
O tempo da EJA é, portanto, o tempo de romper com qualquer lógica supletiva. Não há que suplementar nada. Não há falta passada, a não ser a negação de direitos que devem ser garantidos, a partir dos contextos, da leitura de mundo, no único tempo existente para a ação: o tempo de hoje. E o hoje é sempre novo. É o ‘inédito viável’ freireano. É no hoje que Exu atira a pedra. É também no hoje que Kairós é agarrado pelos cabelos. E é no hoje em que estamos, educadores/as e educandos/as da EJA, esperançando um ano novo, uma vida nova.
Esperançosos hojes em 2021 para nós!
*Educador da EJA na PBH e professor na UEMG-Ibirité. Pedagogo e Mestre em Educação
Referências:
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessário à prática educativa. 18. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 9. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.
Imagem de destaque: Lúcio Bernardo Jr / Agência Brasília – Alunos entrando no Centro Educacional de Taguatinga, EJA