Ensinar em tempos de ofensiva antigênero: resistindo à inquisição, corporificando diversidades

Carolina Machado Mombach*

Na última década, o sintagma “ideologia de gênero” foi constantemente acionado no cenário político brasileiro. Não foram poucas as menções ao famigerado “kit gay” e às suas consequências catastróficas no futuro de nossa sociedade. Tais fatos integram o que se constituiu em uma verdadeira inquisição contra aquelas e aqueles que ousam questionar qualquer ditame de uma existência cisgênera e heterossexual. Os “cruzados antigênero” são assim chamados, na atualidade, justamente porque perseguem qualquer que seja a manifestação de estudos e pesquisas sobre a diversidade sexual e de gênero e, também, porque remetem à cena em que a representação de uma bruxa com o rosto da filósofa Judith Butler (referência nos estudos de gênero) foi queimada durante um ato contra a “ideologia de gênero” no ano de 2017. A ofensiva antigênero, portanto, se organiza em ações de cunho político conservador que visam o assolamento da diversidade em todos os seus tons, nuances e performances, acarretando que qualquer posicionamento que não afirme uma essencialização do ser humano branco, hétero e cisgênero, é considerado uma heresia que deve ser banida.

Uma das principais articulações da ofensiva antigênero é o ataque à Escola laica e cidadã prevista na Constituição Brasileira, o que ocorre junto à desvalorização dos saberes científicos, fundamentalmente no que tange às ciências humanas, o que incidiu em alianças para espelhar esta proposição, como aquela com o movimento Escola Sem Partido. Importantes figuras de governamento, como a ministra Damares Alves, defendem, por exemplo, a educação domiciliar, tal qual, o ensino do criacionismo cristão na educação básica. A docência, desde sua formação, até as suas práticas, é reiteradamente desvalorizada por tal organização política. As eleições para os Conselhos Tutelares em 2019 escancararam essa lógica quando suscitaram o debate sobre quem deveria se ocupar do cuidado das infâncias e adolescências, posto que os “cruzados antigênero” apoiaram pessoas que se relacionavam com setores religiosos, na contramão de professoras e professores que, por vezes, eram rechaçadas/os sob a égide das heresias da “ideologia de gênero”. Assim sendo, a escola passou a ser um ambiente potencialmente perigoso na perspectiva de tal movimento.

A ubiquidade da internet e, por isso, das redes sociais, já é uma unanimidade nas considerações sobre o contemporâneo: no início da década, as redes sociais expandiram sua utilidade de entretenimento para uma mobilização política e informativa. As Jornadas de Junho, que se caracterizaram pelas distintas manifestações populares em todo o país no ano de 2013, são a culminação desta virada, através de atos políticos mobilizados unicamente pelas redes sociais. Desde então, o espaço virtual tem se instituído como uma das principais forças de articulação política, tanto para questões que pautam a diversidade, como para os movimentos reacionários como a ofensiva antigênero. São diversos os vídeos em plataformas de streaming, publicações e disseminação de fake news em aplicativos de interação e comunicação que incitam os “cruzados antigênero” para a defesa de uma sociedade purificada de toda e qualquer variação do ideal da cisgeneridade e da heterossexualidade. O ex-ministro da educação Abraham Weintraub, por exemplo, chegou a motivar que estudantes filmassem professoras e professores que abordassem a chamada “ideologia de gênero”.

Os grupos em tais redes sociais, como whatsapp e Facebook, são uma das estratégias bastante utilizadas para comover a comunidade escolar quanto às ações e práticas no ambiente da escola. Muitas vezes, tais grupos são constituídos por familiares que denunciam as atividades escolares a fim de problematizar as heresias da “ideologia de gênero”, incorrendo em processos e mobilizações contra professoras e professores que abordam a diversidade sexual e de gênero ou não naturalizam a verdade heterossexual. Tal arranjo produz, assim, um afeto ardiloso para a ofensiva antigênero: o medo. Instala-se o temor pela via dos perigos que as diversidades podem apresentar para o futuro da sociedade, bem como, pela possibilidade de escrachos virtuais, presenciais e jurídicos que são efeitos de laborações dissonantes das que pregam os paladinos antigênero. Toda e qualquer fala, gesto e atividade descontextualizada pode suscitar tais escrachos. O simples uso do arco-íris, por exemplo, se tornou uma problemática, já que pode ser associado (mesmo que não intencionalmente) ao movimento LGBTQIA+,

Desse modo, emerge uma questão de extrema relevância para pensar os possíveis da docência em tempos de ofensiva antigênero: que corpo pode dar aula? E, ainda, quais as violências e escrutínios a que está submetido esse corpo, na medida em que o uso das redes sociais, para além dos questionamentos sobre as atividades docentes, também é um mecanismo de investigar a vida das professoras e professores afora dos muros da escola. À vista disso, os hábitos, desejos, relacionamentos, crenças e estilos são averiguados a partir da possivel periculosidade que representa aquele corpo. Quanto maior a diferença do que é delimitado como “normal” pelas moralidades antigênero, maior a necessidade da inquisição que se dá pela interrogação, ou até a suspensão na radicalidade, da viabilidade de lecionar e estar em contato com crianças e adolescentes.

As cruzadas da ofensiva antigênero nos convocam a perceber, não somente a relevância de uma Escola com currículos e práticas comprometidas com uma proposição ética e diversa em relação às/aos estudantes, mas, também, àquelas e àqueles que ali trabalham e lecionam. Afinal, uma Escola aberta à diversidade permite que as essencializações sejam sempre questionadas, dada a sua violência e tolhimento de processos instituintes através de moralizações colonizadoras. A afirmação da diversidade é um fazer cotidiano e um horizonte ético que urge como resistência à inquisição imposta pela ofensiva antigênero. Tal afirmação se dá tanto pelas práticas, como pelas corporificações de tal diversidade no espaço escolar, seja por estudantes ou professoras e professores.

*Doutoranda em Psicologia Social e Institucional- UFRGS. Integrante do Núcleo de Pesquisa em Sexualidade e Relações de Gênero-NUPSEX.


Imagem de destaque: Manifestantes queimam boneca com o rosto da filósofa norte-americana Judith Butler no seminário Os Fins da Democracia realizado pelo Sesc Pompéia, em parceria com a Universidade da Califórnia, 07/11/2017. Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

 

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