Desejos, (re)começos e possibilidades de currículo na EJA

Daiana Maria da Silva¹

Era o início de mais um ano letivo. Para a professora, um contínuo de alguns anos, para a maioria da turma um recomeço com expectativas diversas.

Fazia parte do ritual daquela escola ouvir o porquê dos recomeços e o que esperavam da escola. Assim, construíam o currículo, tentando negociar um pouco do prescrito com muito do desejado. O desejo de quem já tinha vivido tantas negações de direito não podia ser ignorado. Segundo Marlucy Paraíso (2009), o desejo é parte fundamental do currículo. Ele é mobilizador de vontades e aprendizados. 

Dos muitos desejos manifestos naquela primeira aula, um chamou a atenção da professora. Fátima, uma senhora sorridente e um tanto tímida, falou que seu recomeço era uma recomendação médica. Tinha perdido o marido há pouco e um dos filhos, que morava próximo à escola, a chamou para morar com ele, enquanto se recuperava da dor de perder o companheiro da vida. Mesmo junto do filho, foi tomada por um quadro depressivo. Voltar a estudar era uma recomendação médica para ajudá-la a superar o momento difícil. 

A professora perguntou como o médico tinha chegado àquela recomendação, e Fátima disse ter contado a ele que gostava de estudar quando criança e planejou durante muito tempo retornar. Mas sempre teve uma urgência que adiava o projeto. Precisou trabalhar para ajudar os pais no sustento da família, depois se casou e continuou trabalhando para cuidar dos filhos e comprar uma casa. Falou com muito orgulho de ter uma casinha numa cidade da região metropolitana. Ainda não tinha terminado de pagar, mas era sua e estava alugada enquanto vivia com o filho. 

Sobre um dos desejos (e receios) em voltar a estudar estava aprender a fazer contas. Disse que, desde menina, os números no papel eram um desafio. Numa tentativa de descontrair a ansiosa estudante, a professora brincou: 

– Mas como uma pessoa que é assalariada e tem casa própria não sabe Matemática? Precisa fazer muita conta para sustentar a família e ter casa própria (risos). O máximo que posso fazer é te ajudar a colocar no papel essa habilidade de fazer conta que você já tem.

Fátima pareceu um pouco confusa. Deu um tímido sorriso e concordou que tinha feito muita economia com o marido para conseguir criar os filhos e comprar a casa. Mas não sabia que isso era Matemática. 

As duas combinaram de trocar os saberes e compartilhar com a turma. Foi um (re)começo bom.

A professora, mais uma vez, se viu às voltas com a difícil tarefa de lidar com pessoas que traziam as marcas da experiência no corpo e a certeza que pouco sabiam porque não usavam o papel escrito no seu cotidiano. Era comum na fala dos sujeitos, que passaram anos lutando contra ausências e injustiças, dizer que queriam aprender a escrever e fazer contas e atribuir pouco significado a tantos saberes que construíram ao longo da vida.

A professora, assim como muitos que trabalhavam com EJA, tinha o desafio de não portar mais uma frustração àqueles sujeitos, porque nem sempre desvendar os mistérios do papel é simples na fase outonal da vida. Era e segue sendo desafiador convencê-los que muito sabem, e que o papel não é a única forma de legitimar isso. 

À EJA, a missão de fazer verdadeiramente da educação popular, como nos ensina Paulo Freire (2016) e Carlos Brandão (2006), uma realidade. É fundamental reconhecer as vivências de quem são, como diria Conceição Evaristo (2005), heroínas do cotidiano. Mulheres como Fátima garantem a sobrevivência material e simbólica das suas comunidades e tem muito a nos ensinar. Mais do que negociar o prescrito com o desejado, o currículo da EJA precisa valorizar e aprender com tantas histórias e saberes.

 

1Professora das redes municipais de Betim e BH. Mestre em educação. Apaixonada pela EJA e por boas histórias.

 

Referências

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é educação popular. São Paulo: Editora Brasiliense, 2006.

EVARISTO, Conceição. Da representação à auto apresentação da mulher negra na literatura brasileira. Revista Palmares – Cultura Afro-brasileira. Brasília: Fundação Palmares, Ano 1, nº 1, Agosto, 2005. 

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 62. Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2016.

PARAÍSO, Marlucy Alves. Currículo, desejo e experiência. Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 34, n. 2, p. 277-293, maio/ago. 2009.


Imagem de destaque: Lúcio Bernardo Jr / Agência Brasília

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *