Da Pedagogia Carrapato: os campos da EJA e as EJAs nos campos…

“A gente tem que ser igual carrapato, garra num trem e num larga, num larga até conseguir o que quer (…) Grudar com força. Porque, mesmo quando a gente tenta arrancar, ele fica lá insistindo, não solta!”. Mestra discente, nos dizeres-EJA que ecoam os movimentos sociais do campo.

Eu tenho zumbi, besouro o chefe dos tupis/Sou tupinambá, tenho erês, caboclo boiadeiro/Mãos de cura, morubichabas, cocares, arco-íris/Zarabatanas, curarês, flechas e altares.”. Paulo Cesar Pinheiro (música “Não mexe comigo”, interpretada por Maria Bethânia). 

Douglas Tomácio1

E cá estamos, uma vez mais, para pensar as faces tantas da EJA, sob feições de ancestralidade “garrada”, ao tom de zumbi, flechas e cocares também em arco-íris. Nos campos, destoando da urbanidade que centralidade toma em tantos de nossos debates, pedagogias nascem e apontam para construção de teorias que nos convidam a outras reflexões.   

Pedagogias. Pedagogias-EJA. Pedagogias-EJA-Campo. Carrapato!

Acessar esses contextos e sujeitos nos coloca em diálogo com uma EJA especialmente interseccionada, no complexo bojo de entrecruzamentos de marginalizações que, historicamente invisibilizadas, acostumamos afastar de nossos olhares educadores. Deseducados, quando muito, os dedicamos a partir dos prismas especialistas e restritos. É um debate que, portanto, nos parece necessário ampliar, fomentar e fazê-lo junto aos companheir@s que nessas paisagens constroem as vivências que educam. Educam-nos.  

Nas incursões pelo campo, pela educação do campo, a realidade se impunha e colocava em xeque os pontos de vista. Os pensares educação em EJA eram ali postos em perspectivas outras e estas, a partir daqueles sujeitos, ensinavam-nos o enredar de um percurso que não poderia prescindir das reflexões acerca das lutas sociais, do protagonismo dos trabalhadores; que, mestres-discentes, sujeitos são das ações pedagógicas em luta pela cidadania emancipada –  elemento do qual se parte, a partir do qual se estrutura, e para o qual coletivamente se caminha.  

Ali, a vida escrita na vivência dos sujeitos era por estes ecoada e escrita no mundo, e, claro, no mundo escola-educação que na roupagem EJA se dava. Eram os processos de “escrevivências”, que nos anunciou Conceição Evaristo (Oliveira, 2010), a subvencionar o fazer educativo que, freireanamente, defendia a educação pública em oposição à mercantilização da vida e de suas histórias. “Os esfarrapados do mundo” (Freire, 2019), negando-se à reprodução da brutalização, da exclusão e da opressão que cotidianas lhes eram, teciam a arte do carrapato.    

Criavam e ensinavam como forma outra de experienciar o mundo e de nos colocarmos nele. Sob ação coletiva, sedimentada na ética solidária do campo, apostavam na pedagogia carrapato: aquela que não desgruda, que “garra” com todas as forças e gana em seu objetivo, refletido no anseio de fazer visível o que está por vir; e o faz nos processos de reinvenção do existente. Porque vida não se mercantiliza e educação não se confunde com produto. É uma flecha certeira, de sabedoria ancestral, que o caboclo compõe e professora.      

Nesses processos, em campos de zona da mata mineira, os mundos que se apresentavam nos faziam repensar as tessituras do educar. Ali, as obras-fazeres eram atadas a seus criadores e compreensões ancestrais que compunham um plano de valores em relação com o mundo, nas crenças, lutas, saberes-gostosos em flechas, cores, orixás, terra e pão. 

Era um pensar “carrapateado”, em que os sentidos de educar eram criados e recriados a partir da matéria campo, dos arquétipos diversos que este, plural em essência, expressa e nos possibilita compreender. É o saber-fazer que atento a esses enredos nos subvencionam em luta, sob a justa ira e amorosidade  transformadora (Freire, 2018). Enfim, reeduca nossos olhares ao plural, ao diverso, à EJA que também ocorre (e potente!) longe dos ditos centros. 

 

1 – Historiador, Pedagogo. Professor do Departamento de Educação e Ciências Humanas (DECH) e da Faculdade de Educação (FaE) da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG). Professor do Instituto DH – Pesquisa, Promoção e Intervenção em Direitos Humanos e Cidadania. E-mail: dtlmeduc@gmail.com

 

Para saber mais:


FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro, RJ: Paz e Terra, 2019.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. Rio de Janeiro, RJ: Paz e Terra, 2018.

OLIVEIRA, Luiz Henrique Silva de. “Escrevivências”: rastros biográficos em Becos da memória, de Conceição Evaristo. Terra Roxa e Outras Terras, v. 17-B, p. 85-94, 2010.


Imagem de destaque: Foto arquivo pessoal (Da aprendizagem carrapato)

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