Da escola ao subemprego: o que resta à comunidade LGBTQIA+?

Daniela Salú1

Ergon Cugler2

Marina Paredes3

Caroline Gonçalves de Oliveira4

Isabella Natali Miranda Cuccin5

A educação formal é, muitas vezes, sinônimo de acesso a melhores oportunidades, ou, ao menos, acesso básico ao mercado de trabalho. No primeiro trimestre deste ano, o Brasil registrou taxa de desemprego de quase 15%. O cenário é preocupante, pois dentre os desempregados estão milhares de profissionais considerados qualificados, ou seja, com formação técnica suplementar e/ou Ensino Superior. Em uma realidade em que mesmo tais trabalhadores mais qualificados encontram-se sem opções, qual a perspectiva das brasileiras e brasileiros que não contam ao menos com o Ensino Médio ou Fundamental?

Para parcela das populações LGBTQIA+, tal barreira formal e institucional ao ensino é cotidiana, o que, é claro, reflete em mais portas fechadas no mercado de trabalho. Esse percurso de exclusões forma um ciclo que se retroalimenta e, portanto, compreender sua lógica pode ser o primeiro passo para rompê-lo.

Questões e Problemas Públicos

O Estudo  “LGBTQIA+ em Pauta”, elaborado por pesquisadores da USP, identificou dezenas de problemas e lacunas de políticas públicas a nível federal das populações LGBTQIA+ em áreas temáticas, incluindo os campos da Educação e do Trabalho. Os dados indicam que a evasão escolar das populações LGBTQIA+ – que tem relação com a LGBTQIA+fobia – é tanto sintoma, quanto consequência e causa, retroalimentando-se nesse grupo plural e com especificidades.

Na prática, com limitações já no processo formativo de docentes para com questões LGBTQIA+s e de diversidade, nota-se, por exemplo, uma ausência de normativas orientadas pelo Ministério da Educação que resulta nas “questões LGBTQIA+” serem vistas como tabu em sala de aula, impedindo o debate e a interrupção estrutural da discriminação. Além disso, os conteúdos adotados nas escolas têm como régua apenas sexualidades e configurações de núcleos familiares heterocisnormativos, excluindo famílias nos seus mais diversos contextos.

Há, ainda, a temática da educação sexual, que em si já é um tabu na sociedade, sendo encarada de maneira moralista, mesmo fora da pauta LGBTQIA+. A ausência de informações básicas, como IST’s e direitos sexuais e reprodutivos demonstram como a educação sexual é tabu. Na prática, porém, a omissão desse tema leva à estigmatização e violências, como o trágico percentual de 55% dentre os jovens LGBTQIA+ que já foram vítimas de assédio sexual em ambiente escolar. A recorrente fetichização e hipersexualização corroboram com um universo hostil de assédio de adolescentes LGBTQIA+ diante da ausência de educação sexual – a qual poderia, por exemplo, possibilitar que uma criança reconhecesse que sofreu algum tipo de abuso.

É nesse contexto de constante discriminação em ambiente escolar, além de limitações institucionais para debater seriamente a sexualidade e ausência de acompanhamento psicológico, que observa-se a evasão escolar das pessoas LGBTQIA+s. Além disso, a realidade das crianças e adolescentes LGBTQIA+ no Ensino Básico se repete no Ensino Superior. Segundo levantamento da Andifes, apenas 0,3% de estudantes matriculados em universidades federais brasileiras são transexuais. O desrespeito e dificuldades de permanência são ainda mais destacados para grupos em intersecção de discriminações, como pessoas negras, mulheres, trans e travestis.

Porém, se LGBTQIA+s não acessam e não permanecem na universidade, a presença dos debates, pesquisas, discussões e políticas educacionais que as tocam também não são perpetuadas na Academia. Nas salas de aula, por exemplo, diversos professores LGBTQIA+ relatam sentir medo constante de perder o emprego, colocando mais uma barreira psicológica no acesso às licenciaturas e ao debate pedagógico, por exemplo.

Lógica Estrutural e Trabalho

Uma vez negligenciadas no âmbito educacional, as populações LGBTQIA+ também sentem o impacto da exclusão no mercado de trabalho. Ao considerarmos o trabalho como direito constitucional e meio de desenvolvimento pessoal, humano e de inserção social, é responsabilidade do Estado assegurar o direito ao trabalho digno. No entanto, como evidenciado na pesquisa do OIPP/EACH/USP, o Estado brasileiro é inerte diante da temática do trabalho para a população LGBTQIA+, como também não possui e nem produz dados suficientes para elaboração de políticas públicas.

Em relação ao direito ao trabalho digno para a população LGBQIA+, identifica-se a discriminação e o preconceito como fatores que impedem ou tornam difícil o acesso ao mercado de trabalho ou aos centros de tomada de decisão.  Ainda, o baixo conhecimento sobre as especificidades e realidades de todas as siglas da população LGBTQIA+ em questões como raça, gênero e classe social, impede que hajam dados representativos sobre a diversidade de trabalhadores e, então, políticas públicas assertivas na tentativa de sanar problemas históricos e presentes.

Neste contexto estruturalmente cíclico, o desrespeito pelo nome social, os desconfortos com questionamentos acerca da orientação sexual e identidade de gênero, o descaso e o desrespeito pautados na moralidade e no desconhecimento, corroboram para a marginalização social e, principalmente na população T, levam à prostituição/trabalho sexual como única forma de aquisição de renda. Dessa forma, reforça-se o ciclo de exclusão que permeia todas as instituições – família, escola, trabalho -, e expõe essas pessoas aos fatores de risco de vida como violência, abuso de drogas ilícitas, afastando ainda mais essa população dos direitos de cidadania.

Dessa forma, tratar a discriminação estrutural como problema público, comum, e não apenas individual ou “identitário”, significa compartilhar soluções que passam, portanto, pelo debate público e coletivo da pólis. Em outras palavras, enfrentar algo institucionalmente demanda transformações estruturais e políticas para que se reverbere em mudanças e mobilizações reais. Não se trata de um debate pontual e isolado, mas transversal às demais pautas de interesse do Estado – e eis o desafio de trazer a pauta à centralidade do debate.

 

1Caroline Gonçalves de Oliveira  é graduanda em obstetrícia e pesquisadora na Universidade de São Paulo (USP) pelo Observatório de Atividades Educativas para Profissionais dos Sistemas Públicos de Saúde. É associada ao Grupo Internacional e Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Formação de Profissionais de Saúde (GIEPS), da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH).

2Daniela Salú Mateus da Silva é pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP) pelo Observatório Interdisciplinar de Políticas Públicas (OIPP) e co-coordena o projeto Agenda Governamental em Pauta. É associada ao Grupo de Estudos em Tecnologias e Inovações na Gestão Pública (GETIP), da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH).

3Ergon Cugler é pesquisador da EACH-USP, associado ao Observatório Interdisciplinar de Políticas Públicas (OIPP) e co-coordena o projeto Agenda Governamental em Pauta. É colaborador do Oxford COVID-19 Government Response Tracker (OxCGRT) e Representante da Sociedade Civil na Comissão da Agenda 2030 da ONU para São Paulo.

4Isabella Natali Miranda Cuccin é graduanda em Gestão de Políticas Públicas e pesquisadora voluntária no projeto Agenda Governamental em Pauta do Observatório Interdisciplinar de Políticas Públicas (OIPP).

5Marina Bergstrom Paredes é graduanda em Gestão de Políticas Públicas na EACH-USP e pesquisadora voluntária no projeto Agenda Governamental em Pauta, pelo Observatório Interdisciplinar de Políticas Públicas (OIPP).


Imagem de destaque: Sofia von Humboldt 

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