D. Pedro I e o "Dia do triunfo"

José G. Gondra*

Pano de boca do Teatro Tribunal por ocasião da coroação de D. Pedro I. Jean Baptiste Debret, 1822. Acervo da Biblioteca Publica de Nova York.

A gramática do processo de emancipação política do Brasil recorre a um vocabulário diverso. Termos como independência, autonomia, liberdade, soberania, autogoverno e autossuficiência comparecem na documentação contemporânea aos acontecimentos que culminaram com a quebra de tutela entre Portugal e Brasil, entre fins do século XVIII e início do século XIX. Vocabulário a que se recorreu para afirmar o autogoverno brasileiro, tanto nas negociações internas, como nas ações diplomáticas e financeiras com outros países em busca do reconhecimento da sua liberdade.

Foram muitos gestos, mais ou menos violentos, para desenhar e assegurar o projeto de autonomia nacional e da legitimação da forma e regime de governo monárquico e constitucional. Parte destes gestos foi voltada para afirmar que o centro do poder girava ou deveria girar em torno da família imperial, sobretudo de seu patriarca, D. Pedro I.

A fabricação de uma representação heroificante do primeiro Imperador do Brasil recorreu a muitas outras festividades, como a que se deu no seu natalício (12/10/1822). Nesta data simbólica, ocorrera a cerimônia de sua aclamação, acontecimento relembrado em um periódico da época chamado O Espelho (03/12/1822): “O Brasil, suplantando o despotismo, e a anarquia, havia levantado, no glorioso 12 de outubro, um novo trono, erguido sobre o amor e a gratidão de um povo generoso, que firmado em bases tão sólidas, persistira inabalável, a despeito de solapadas intrigas e de agressões descaradas. (…). O redator fala da existência de “solapadas” e “agressões” em relação ao trono, suplantadas pelo amor, gratidão e generosidade do povo. No entanto, a fundação do Brasil independente passou por um longo e complexo percurso rumo ao seu reconhecimento.

Outro ato importante na jornada em favor da liberdade consiste nos festejos da coroação e sagração do imperador realizado em 01/12/1822. O cerimonial para o dia foi marcado por diversas manifestações, tendo iniciado como uma salva de tiros na alvorada. Em seguida, da varanda do Paço Imperial, D. Pedro I discursou por cerca de uma hora, para uma multidão de cerca de 3 mil pessoas. Em seguida, dirigiu-se à Capela Imperial onde assistiu ao Te Deum.

O cerimonial procurou apresentar um poder político inviolável atribuído a D. Pedro, sustentado na sanção religiosa (a unção como marca do desígnio divino), na sanção política (na “aclamação repetida em todas as províncias”) e no direito hereditário do imperador ao trono do Império. Esta dupla sanção também pode ser percebida no último ato daquele dia, ocorrido no Teatro Real de São João.

De acordo com a descrição contida n’O Espelho, as “suas majestades” chegaram pelas oito horas (da noite), acompanhadas da jovem princesa, com sua guarda de honra. Logo que correra a cortina da real tribuna, o povo rompeu nos mais cordiais vivas, uniformemente repetidos. O espetáculo começou com uma harmoniosa sinfonia, seguida por um elogio poético, recitado por um ator. Uma companhia italiana apresentou a ópera “Isabel da Inglaterra”, com música de Rossini, o pai da harmonia, como é classificado. O intervalo contou com “dois belos duetos de dança”. De acordo com esse impresso, as comemorações se seguiram no dia seguinte, como também no dia 3 de dezembro que, de acordo com o redator, “não precisavam de nossa humilde narração”.

O espetáculo preparado para as elites cultivadas contou com um objeto especial, para o qual quero chamar atenção. Trata-se do “pano de boca” elaborado especialmente para esta sessão pelo pintor oficial do Teatro: Jean-Baptiste Debret.

O velho pano de boca, que continha a imagem de um rei português cercado de pessoas ajoelhadas, foi substituído. A cena imaginada por Debret e negociada com o ministro José Bonifácio foi o que a família imperial e seus convidados viram antes e durante a dramaturgia encenada como último ato das festas de entronização de D. Pedro I.

É possível compreender o pano de boca como recurso adicional no ritual de consagração do soberano e da oferta de uma narrativa promissora destinada a forjar uma memória para o povo.

Nesta pintura, um sinal do afastamento do antigo regime consiste no fato do trono ser ocupado por uma figura feminina alegórica, representando o governo imperial, coroada, caracterizada com as novas cores do Império e trazendo nas mãos as tábuas da Constituição, outorgada em 1824. A alegoria feminina presente no centro reforça a proposta de um novo governo orientado por aparato normativo e menos pela figura absoluta de um monarca.

Outro indício pode ser percebido na esfera celeste com a inicial “P” do novo soberano D. Pedro, coroada e sustentada por figuras celestiais, ao mesmo tempo em que indica a preservação de vínculos com a igreja católica. Os seres alados, a figura do governo imperial e as cariátides (figuras femininas esculpidas e que servem como coluna ou pilar de sustentação) compartilham o espaço com a rica vegetação brasileira, compondo um cenário do que deveria representar as riquezas, fertilidades e religiosidade do Brasil independente.

A marca de uma sociedade em harmonia pode ser considerada um terceiro ordenador da narrativa. Brancos, negros e índios, homens e mulheres, unidos e armados com foices, machados e armas de fogo aparecem com gestos de defesa da nova ordem. Os povos nativos, com histórico de resistência à conquista, aparecem próximos aos soldados e aos negros voltados e dispostos a servir ao novo Império. Crianças de várias cores buscam simbolizar, enfim, uma mestiçagem existente e desejável no Brasil.

Por fim, a lavra do próprio autor deixou mais um rastro. Segundo ele, pintor do teatro, fora encarregado do novo pano, cujo esboço representava um ato de devoção geral da população brasileira ao governo imperial. Essa composição foi submetida às observações do primeiro-ministro José Bonifácio, que a aprovou. Ele apenas pediu a Debret que substituísse as palmeiras naturais por um motivo arquitetônico regular, para afastar toda ideia de estado selvagem. Portanto, o bárbaro, na versão final, cede lugar a elementos que oferecem uma série de pistas do que deveria representar a jovem nação.

No caso de Debret, um funcionário da monarquia, que se poderia querer dos objetos que produziu para os governos de D. João VI e D. Pedro I? Gêneros, raças, idades, natureza e elementos religiosos parecem compor uma nova ordem, idealizada, em que as diferenças entre os súditos comparecem unificadas em torno e em favor do novo projeto.

A encomenda, contudo, termina por fabricar ausências. Os revoltosos do Sul ao Norte, do Rio Grande do Sul, Bahia, Pernambuco, Grão Pará; bem como os que se rebelam contra a escravidão, os defensores da República e aqueles que desejavam a manutenção do regime colonial, consistem em alguns dos vazios nas pinturas de história que Debret produziu. Se isto é perceptível no pano de boca em destaque, a representação da fusão entre poder político e temporal e exclusão dos conflitos que marcaram o processo da emancipação do Brasil, também comparecem no pano de boca que pintou para a coroação de D. João VI, na tela da sagração de D. Pedro I e na primeira bandeira do Império Brasileiro.

No pano de boca em questão, tratou-se de inventar um visual almejado para o novo Império. Ainda que a natureza e gentes plurais assumam acento no pano de boca do pintor francês, desta representação são expelidas as lutas e tensões que sonharam outras soluções para a América portuguesa. As lutas por direitos e liberdades, pelo autogoverno e maioridade, efetivamente não cessaram, ainda que muitos registros insistam em deslegitimá-las, inclusive com o apagamento mais ou menos violento das diferenças constituintes da Nação.

Talvez tudo isso ajude a compreender a manifestação do pintor francês ao descrever o admirável entusiasmo existente no Rio de Janeiro nos últimos meses de 1822, bem como o impacto de sua pintura, aprovada de véspera por José Bonifácio e vista, pela primeira vez, na noite de 1/12/1822. Para Debret, os aplausos prolongados durante a última aparição do novo pano de boca, no momento de encerramento da apresentação, completaram o dia do triunfo, o que confere sentido positivo ao que produz e confirma as relações entre arte, política e compromissos do novo regime.

*Professor Titular na UERJ. Pesquisador CNPq/FAPERJ

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