Crianças que não têm nome

Sofia Favero¹

Quando pensamos na categoria criança, qual imagem surge em nossa mente? Quais são os contornos, traços e características que compõem a criança do imaginário que compartilhamos? Essa é uma das grandes questões para o campo de estudos sobre infância, que tenta fornecer críticas incisivas às homogeneidades que impetramos às crianças. Essa não é, portanto, uma categoria que escapa ilesa a respeito daquilo que produzimos em termos de norma, o que faz com que, geralmente, ao pensarmos na “criança”, vejamos com “ela” as marcas da branquitude, da cisgeneridade, da heterossexualidade, bem como outros fatores, especialmente relacionados à ideia de corpo, saúde e bem-estar. 

A questão do presente texto é que ao considerar a categoria criança como singular, as outras experiências infantis, que destoam dessa suposta normalidade, são rapidamente situadas à margem. Embora não costumemos falar, por exemplo, em crianças cis ou crianças heterossexuais, isso não significa pensar que essa relação não tenha sido naturalizada por nós, conforme diz Andrea Moruzzi, ao apontar os regimes de enunciabilidade que dimensionam o sujeito infantil. Talvez, ao invés de afirmar que não falamos isso por razões ambíguas, seja preciso reconhecer que a dificuldade de nomear certas infâncias como heterossexuais ou cisgêneras se dê pelo fato de que essas conexões soariam redundantes. Falar sobre “criança” aparenta ser algo que diz sobre cisgeneridade, heterossexualidade, branquitude e outros ideais corporais.

O que tenho notado é que, quando se faz necessário se referir a crianças outras, essas que não estão acolhidas pelo paradigma normativo, suscitam-se algumas complexidades. Nesses momentos, fala-se em crianças que subvertem a heteronormatividade, crianças em variabilidade de gênero, comportamento sexual atípico, criança com trejeitos, criança que tem uma “questão” de gênero e/ou sexualidade, etc. Observa-se uma resistência em denominar a que experiência nos referimos. Para além de pensar aqui que deveríamos atuar em defesa das nomeações identitárias, convém, nesse primeiro momento, considerar o que impede de vermos a “diferença” na infância como algo concreto. Tal resistência ilustra uma evidente oposição às possibilidades das crianças serem aquilo que não foram projetadas para ser? 

Como algo que faz parte do projeto colonial da adultez, que se recusa a levar a sério as demandas da infância, ou seja, que apresenta a criança como alguém destituído de vontade. Criança não tem querer. Criança não sabe o que quer. Por outra via, o trabalho a ser realizado por nós, pessoas interessadas em outros destinos às armadilhas normativas, é o de refletir sobre os efeitos que essa produção da infância (disciplinada, vigiada, moldada para uma ideia de vida adulta) têm na vida de crianças que, pela diferença, vêem-se privadas da possibilidade de afirmar suas diferenciações. Como bem nos lembra Jane Felipe, há uma intensa prescrição de modos de comportamento e atitude para que não desviem do suposto horizonte saudável da norma. 

Ora, o que faz com que tenhamos tanta objeção em falar “crianças trans” ou “crianças gays” é a presunção de que essa criança deveria ter sido, a priori, heterossexual e cisgênera? Caso exista uma resposta positiva a essa pergunta, seria preciso admitirmos que a “diferença” sexual e de gênero permanece vista com antagonismo. Entendidas como sem agência, autonomia ou capacidade decisional, as crianças que declarassem ser o que não foram projetadas para ser seriam interpeladas pela desconfiança. Veriam-se obrigadas a habitar um limbo discursivo, de posições impronunciáveis, não-ditas: crianças em conflito com algo, nunca a norma em conflito com elas – mudança de paradigma que nos convocaria a assumir que a norma é histórica, política e construída por nós. 

Por mais breve que seja, essa não é uma discussão somente sobre uma matriz gramatical, mas, sobretudo, sobre uma matriz do pensamento. Podemos identificar a presença de políticas higienistas ao longo do século XIX e XX, quando as crianças eram inseridas na literatura científica como seres em construção, mas como é que poderíamos admitir o desenvolvimento de um sujeito desvirtuado, fora dos limites inteligíveis da heterossexualidade e cisgeneridade? Vistas como sem agência, agora sem designação, certas experiências infantis apontam para a erupção de um lugar que, embora distante da palavra, pode nos situar diante de escutas mais sensíveis. Caso desejemos a criação de um mundo outro, no qual as fronteiras entre o normal e patológico estejam mais borradas, precisaremos refletir sobre o porquê de tomarmos algo como “natural” para umas e “impróprio” para outras. 

 

1Psicóloga e Doutoranda em Psicologia Social e Institucional pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul)


Imagem de destaque: Freepik / Jcomp

 

 

 

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