Construir uma educação anticapacitista: um desafio ético-político

Marivete Gesser¹

A escola, pelo menos no Brasil, nunca foi para todos. Na educação básica, esta instituição tem excluído sistematicamente estudantes que de alguma forma não se enquadram no que é esperado em termos de aprendizagem e de comportamento, de acordo com um estudo realizado por pesquisadoras/es do LAPEE. Esse processo de exclusão fica ainda mais evidente na Pandemia de COVID 19, bem como suas relações com raça e classe, conforme já retratado na matéria “As desigualdades educacionais e a covid-19”.

Ademais, os estudos que temos realizado no Laboratório de Psicologia Escolar e Educacional da UFSC têm indicado que a escola pouco modificou seus espaços e práticas pedagógicas no que se refere aos modos de ensinar e acolher a diferença. Esses tendem a prescrever modos de aprender, de expressar o gênero e a sexualidade e de performar a branquitude (mesmo que de acordo com o Censo do IBGE de 2010, mais de 50% da população brasileira seja preta, parda, amarela ou indígena). Além disso, a configuração dos espaços e métodos de ensino também comunica quais corpos são legitimados a participar da escola, que nem sempre está preparada para acolher com equidade as múltiplas corporalidades.

O campo do feminismo negro, diante dessa complexidade de elementos constituinte do sujeito, tem indicado a relevância de um olhar interseccional. Esse campo pode nos ajudar a compreender como a escola, por meio de suas práticas normativas, tende a corroborar a segregação de estudantes que são atravessados pela intersecção entre sistemas opressivos como o capacitismo, o sexismo, o racismo, a LGBTIQfobia, o colonialismo e o classismo. 

Embora esse tema relativo à exclusão de estudantes na educação básica é bastante amplo, neste texto eu pretendo trazer algumas reflexões a partir dos Estudos Críticos da Deficiência, com ênfase na Teoria Aleijada (Crip Theory) e nos Estudos da Justiça da Deficiência (Disability Justice), com ênfase no Acesso Coletivo. Essas perspectivas apresentam importantes contribuições para a proposição de uma educação anticapacitista e para o desafio de “aleijar” a escola, no sentido de produzir fissuras visando romper com os enquadramentos normativos para garantir a participação das corporeidades dissidentes, as quais são constituídas pela intersecção de processos opressivos tais como racismo, sexismo, capacitismo, cisheretonormatividade e classismo. 

A Teoria Aleijada (Crip Theory) tem apontado que a heterossexualidade e a capacidade são compulsoriamente produzidas e excluem aqueles corpos que não performam o modelo normativo. Assim, corpos crip – por não reproduzirem a capacidade compulsória – e corpos queer – por não reproduzirem a cisheteronormatividade – são lidos como corpos abjetos e também como corpos sem futuro, como já mostrou Alison Kafer. Ademais, a Teoria Aleijada aponta importantes elementos para pensarmos a criação de um futuro em que corpos queer e crip sejam não apenas aceitos, mas celebrados como parte da diversidade humana. 

A perspectiva do acesso coletivo desafia a todos nós com a construção de práticas que tenham como princípio basilar que “nenhum corpo ou mente deve ficar para trás”. Baseada em princípios como os de interseccionalidade, interdependência e acesso equitativo, essa perspectiva também nos instiga a tirar do indivíduo a responsabilidade pelo acesso, implicando a coletividade a acolher corporalidades múltiplas. Assim, a perspectiva do acesso coletivo desafia a escola para a construção de espaços providos de tecnologias assistivas, meios de comunicação mais flexíveis, pausas extras e mudanças na configuração dos espaços os quais tendem a beneficiar todas as corporeidades, com e sem deficiência. Também aponta a necessidade de se romper com os enquadramentos capacitistas que deslegitimam a participação de pessoas com diferentes expressões do gênero, sexualidades, raças, etnias, variações linguísticas na escola. Pesquisadores brasileiros vinculados ao Comitê de Acessibilidade e Deficiência da Associação Brasileira de Antropologia criaram uma Contracartilha que oferece importantes indicações nesta direção.

É claro que temos muitos desafios para construir práticas anticapacitistas na escola, de modo a garantir o acolhimento e até celebração da diferença, já que os enquadramentos normativos de gênero, sexualidade, raça, deficiência e pobreza desqualificam grupos marcados por essas intersecções e os responsabilizam por não se enquadrarem no ideal normativo de sujeito. Junto a isso, temos questões estruturais como as políticas de austeridade que infelizmente não coadunam com a ampliação do acesso para a garantia da equidade. 

Para finalizar, embora eu reconheça que romper com práticas educativas que excluem de forma sistemática e até institucionalizada quem difere dos ideais normativos não é um desafio simples, entendo que a Teoria Aleijada e a Perspectiva do Acesso Coletivo oferecem importantes elementos para “aleijar” a escola, transformando seus espaços e os modos de se relacionar. E sem dúvida, é necessário ampliar cada vez mais as análises e descolonizar as ideias e práticas tão fortemente presentes nesta instituição para assim contemplar a todas as corporeidades.

 

1 – Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), onde atua como Coordenadora do Núcleo de Estudos sobre Deficiência (NED) e Integrante do Laboratório de Psicologia Escolar e Educacional (LAPEE).


Imagem de destaque: Gerd Altmann / Pixabay

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