Construção Social da Violência nas Relações Íntimas

Elizabeth Ma. Fleury-Teixeira *

Estimativas globais publicadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) indicam que aproximadamente uma em cada três mulheres (35%) em todo o mundo sofreram violência física e/ou sexual por parte do parceiro ou de terceiros durante a vida. A maior parte dos casos é de violência infligida por parceiros. Em todo o mundo, quase um terço (30%) das mulheres que estiveram em um relacionamento relatam ter sofrido alguma forma de violência física e/ou sexual por parte de seu parceiro. Apesar da gravidade mostrada pelos números, comparando com os estudos sobre as mulheres em situação de violência, ainda é pequena a literatura científica que se debruça sobre as características e os fatores responsáveis pelo comportamento dos homens autores de violência.

Esse fato foi decisivo para definir meu interesse em tratar desse tema em minha pesquisa de doutorado em Sociologia na Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR). Entre escrever o projeto, fazer a inscrição, prestar os exames para o obter a vaga no doutorado e cursar as disciplinas depois de ser aprovada, dois anos foram consumidos para estudar a questão mais a fundo, conhecer as diversas abordagens que a ciência têm dedicado ao assunto e escolher a minha própria abordagem para estudar as questões envolvidas.  Minha escolha envolveu um olhar aprofundado sobre como se dá o aprendizado de homens autores de violência das normas sociais, de valores, crenças, questões culturais enfim, responsáveis pela lenta mudança de costumes em relação às mulheres e conquista de seus direitos. Em meu estudo, portanto, tenho trabalhado para compreender que características em comum têm esses homens que podem ser tratadas como tendências originadas na educação recebida no interior das famílias e em outros espaços como as escolas, também responsáveis por grande parte das características (estruturas) adquiridas pelos homens que esta pesquisa vem analisando.

Todo o sucesso da pesquisa dependeria de encontrar estes homens autores de violência reunidos nas organizações que se encarregam de montar grupos de reflexão para onde o sistema de Justiça de Minas encaminha aqueles que já foram punidos pela Lei Maria da Penha. Em Belo Horizonte esse trabalho é realizado no Instituto Albam (premiado pela ONU por três vezes) e ainda no Programa Dialogar da Polícia Civil do Estado de Minas Gerais, que autorizaram a realização da pesquisa em seus grupos. Os primeiros 12 meses foram de uma atividade fundamental para a continuidade da pesquisa – durante 48 semanas, de março de 2018 a março de 2019, fiz o que em sociologia chamamos de “observação sociológica”, acompanhando o funcionamento dos grupos e os debates realizados pelos homens e os psicólogos responsáveis. Somente a partir desse acompanhamento foi possível elaborar os dois questionários que foram respondidos na segunda etapa da pesquisa e que geraram os dados necessários à análise pretendida.

Em 2019, em Belo Horizonte (Minas Gerais), um total de 456 homens autores de violência punidos pela Lei Maria da Penha foram encaminhados pelo sistema de justiça para grupos de reflexão existentes em dois programas de atendimento na cidade: o Instituto Albam atendeu 331 homens; e o Programa Dialogar da Polícia Civil de Minas, atendeu outros 125 autores de violência punidos pela Lei Maria da Penha. A pesquisa que está sendo feita com essa amostra, analisa dados de 30% (137) desses homens, com o objetivo de compreender o perfil dos casos, os dados socioeconômicos da amostra e tipo de socialização à qual foram submetidos na infância e juventude.

Conclusões parciais – Nas situações de violência envolvendo essa amostra de homens punidos pela Lei Maria da Penha em Belo Horizonte, um maior percentual aponta a prevalência da prática de Violência Verbal, em 37,4% dos casos. Em segundo lugar, vêm as Ameaças, com incidência de 13,3%. Na montagem da pesquisa acabamos por separar, para descer a detalhes, os termos “violência física” e “surras“, que somam juntas 16,5% do percentual da amostra – separadas, essas opções registraram violência física com 14,3% e surras com 2.2%, revelando que os problemas entre os entrevistados e suas parceiras/ex-parceiras muitas vezes ultrapassaram a violência verbal.

Quando a temática da discussão enfoca “Motivações para o Conflito”, os indicadores capazes de dar sentido à compreensão dos entrevistados sobre os motivos das desavenças foram, pela ordem: Falta de Diálogo (41,8%); Ciúme (38,5%); Falta de confiança (34,1% %); Incapacidade de Comunicação (33 %). Até visões diferentes de mundo (20,9%) ou incapacidade de lidar com crises (22%) foram apontadas pelos homens entrevistados como vertentes explicativas convincentes, em lugar das clássicas explicações dos determinantes sociais da violência.

Para ampliar as dimensões dessa questão, o cruzamento de variáveis trouxe uma associação entre os indicadores de religiosidade e motivações para o conflito. Homens que foram socializados com maior religiosidade apontaram ciúmes como importante motivação para o conflito. Aqueles que responderam Sim para “Minha família valorizava isso e crescemos recebendo educação religiosa” mostram-se mais associados à resposta Sim para Ciúmes no tema Motivações para Conflito.

Na amostra que ora analisamos, há dois dados no indicador motivações para o conflito, onde os homens entrevistados rejeitam a explicação de vulnerabilidade econômica entre seus motivos para a violência. Apenas 8,8% dos respondentes credita à falta de dinheiro a explicação para seu conflito, enquanto 73,6% rejeita essa visão. Também no campo econômico outro item, falta de emprego, foi rejeitada por 71,4% dos entrevistados ao lado dos 11% que concordam com essa explicação.

Essa forte rejeição sinalizada nas escolhas dos respondentes, em parte pode ser explicada como reação a adotar uma visão pessimista de suas próprias histórias de vida, uma vez que houve, na infância e juventude (como esperado), expectativas por parte de suas famílias de que se tornassem adultos capazes de se manter no trabalho e tornarem-se provedores responsáveis por esposa e filhos. Ao mesmo tempo, assim reagindo, os entrevistados podem estar se alinhando à visão explicativa de formadores de opinião de extratos de classes superiores sobre motivos que explicam a falência de seus próprios casamentos, conforme disseminada/popularizada na mídia – falta de diálogo e incapacidade de comunicação, estão entre as razões mais alegadas.

*Pesquisadora da Fiocruz, socióloga, mestre em Sociologia pela UFMG e organizou e é uma das autoras de verbetes do Dicionário Feminino da Infâmia – acolhimento e diagnóstico de mulheres em situação de violência,publicado em 2015 pela Editora Fiocruz.

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Este texto integra uma parceria entre o Pensar a Educação, Pensar o Brasil 1822/2022 e o Instituto René Rachou (Fiocruz) para promover ações e reflexões em torno da Educação para a Saúde.


Imagem de destaque: Alexas_Fotos / Pixabay

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