Confissões de um destino – a diversidade na ponta da lança

Ivane Perotti

Nasceu um de três. Fora das preferências, sobrevivera. Preterido e subestimado, coube-lhe o crescimento de uma planta. Nutrientes esvaziados mantinham-no preso à existência dolorosa. Fios desencapados liberavam raios no cérebro inquieto. Estrondosos raios amarravam-se ao mesmo feixe. Sem pausa, pensamentos confusos ardiam. Quanto mais confusos, maior a explosão externa. Dores do pensar avançavam pelo corpo. Abriam a pequena boca com elásticos sonoros. Chicotes da fala ausente. O ambiente tornava-se pesado. Conturbado por mãos ainda mais nervosas, cheias de cansaço e frustração. Quando os raios cediam lugar às bolhas de vácuo, o corpo deslizava por momentos sem luz. A cabeça pendia, o peito lancinava espadas de oxigênio forçado. E ao redor, a casa chorava remorsos. Preso ao destino que não escolhera, sucumbia à solidão de pares. De olhares. De mãos. Afagos. Espiava por entre as pálpebras da incompreensão e pesava-lhe o não recebido. Uma nesga de lucidez pairava após as crises, por momentos tão velozes que a dor da existência fugia, envergonhada. Então, gotas de um orvalho jamais colhido enchia-lhe a alma de compreensão e reclames. Era um de três que não deveria ter nascido. Em nascendo, que fosse, dos três, um: um menino normal.

_ Vocês devem aceitar que não há o que se fazer. Aceitar faz parte do tratamento para os que precisam lidar com ele. Ele permanecerá assim até o fim da vida. Precisará sempre de cuidados.

A voz do médico não acalmou a mãe, pois o real pedido não verbalizara. Movida a muitos cansaços e desapontamentos, a maternidade cobrava-lhe o luto em vida. Culpava-se. Culpavam-na. Exausta, aprendera a esconder-se em doenças: parceiras de refúgio e isolamento.

_ Vocês poderiam matriculá-lo em uma escola pública. Não esperem evolução. Ele não tem o que render. Mas pelo menos, receberia cuidados e a senhora teria um tempo. Pensem nisso.

Matriculado, o um de três passou a frequentar a escola pública. Preso à cadeira que o mantinha meio ereto, meio arqueado, zingava entre os mundos por habitar. Mas há peças no tabuleiro da vida que podem coroar a rainha. Ou o rei. Ou todes ao mesmo tempo. Depende de que lado se instala o peão, a peoa: do lado do sistema ou do lado da vida. Sempre os mais fortes, as mais fortes para nutrir ou para sacrificar as diferenças.

Um de três encontrou um peão que reconhecia na diversidade o xeque-mate da escola. Intrépido trabalhador da educação, escolhera o lado do jogo que não reconhecia a normalidade como elemento regulador da sociedade. Vira em um o diapasão das possibilidades. E investiu. Investiu no olhar que avança, na conversa que abre as janelas da alma – talvez da mente ocupada por cordas, raios e vendavais. O professor investiu em brincadeiras que aproximam mundos. Investiu em mundos que aproximam brincadeiras. Deslizou sabedoria prática sobre as mãos de um. Habitou o vazio de significados com a rotina de encontros do afeto. Fez plágio da vida para colar textos nas impressões do menino sem voz. Apresentou-lhe ilhas de acesso entre leituras, imagens, músicas, danças e interação com outras crianças. Outras crianças não o repeliram. Acolheram-no. Até mesmo quando os gritos rompiam as paredes da sala de aula e invadiam os corredores da pequena escola. Gritos têm sintaxe própria. A sua gramática exige paciência, atenção e cuidados. Atributos esses que pautavam a docência do professor. E configuravam capacitações de muito investimento. Ser operário da educação não é dom ou missão. É investimento e custa valores monetários, valores culturais, dispêndio de horas e mais horas de estudo comprometido. A profissão cobra postura e conhecimentos. Cobra planejamentos, execuções e reinvenções diárias. O custo para a formação contínua dos professores é tão contínuo quanto as suas demandas. Quem não as vê não as quer. Quem não reconhece o professor constrói abismos. E desses abismos a história está obesa. Enquanto não se ocupa um lado, as quinas avançam sobre tabuleiros ingênuos e despreparados para o jogo das resistências.

Um de três instalou-se melhor na cadeira andante. Já reconhecia a hora do encontro com o mundo que se abria, lentamente, mas se abria. Pequenas mudanças testemunhavam grandes avanços. Olhares de contentamento. Brilho das novidades que se achegam e ocupam o gosto. Sintaxe de novos sons. Sons de contentamento. Ondas de reconhecimento lambendo as ilhas assoladas por maremotos neurológicos. Silêncios de sentidos ocupados. Bolhas de paz. Pequenas bolhas que se iam propagando e repetindo. Dores do não sentido alinhadas às leituras coloridas pelo leitor e pelo ouvinte. Histórias de um e para uns. Narrativas para todes.

O destino de um abriu destinos. Diariamente, na escola pública, ele é recebido pelo nome que já reconhece. Um de três não sabe, mas querem-no em outro lugar. Se dissesse de sua alma, talvez confessasse a dor do crime: separado não! Separado não!

As crianças da escola pública que tantos Leos recebe, escreveram uma carta. Ela começa assim:

Senhor Presidente do Brasil, nós somos os Leos que o senhor quer separar…


Imagem de destaque: Freepick

 

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