Com o vírus: sexualidade e gestão de risco na pandemia de COVID-19

Flávio Soares

Marco Aurélio M. Prado

Rafaela Vasconcelos

A Pandemia da COVID-19 fez com que os países e as sociedades se organizassem em função de gerir o risco da contaminação e, a partir disso, fomentar normas de distanciamento físico como uma das principais medidas sanitárias para contenção do vírus. Nos países nos quais o cuidado sanitário foi gerido politicamente, a partir de parâmetros da Organização Mundial de Saúde,  de modo geral, o uso de máscaras e uma maior intensidade da vida on-line foram se estabelecendo de formas distintas como marcas da vida individual e coletiva neste contexto. 

Tal cenário perpassa, ainda hoje, a vida de milhões de pessoas. De todas as formas de sociabilidade e de produção de subjetividades que foram afetadas, parece-nos que uma área subestimada é a das práticas sexuais e dos encontros em função de um risco presente e invisível. As praticas sexuais podem ser entendidas como “formas de gestão de corpos, prazeres e discursos que dizem respeito a constituição de acontecimentos onde a noção de sexo opera como elemento mediador de  interesse ou elemento desestabilizador.” (Oliveira & Maia, 2019, pp12).  

Quando observamos materiais oficiais divulgados pelo governo brasileiro, direcionados à população jovem, LGBT+ e casais, no contexto da pandemia, inexistem menções a sexo e desejos, ou mesmo a práticas profiláticas que partam do princípio de que esses campos constituem a vida dos sujeitos. Os conteúdos sobre diversidade sexual e de gênero são empobrecidos e regulados e o discurso geral se alinha à gestão federal, por exemplo, na menção de questões religiosas e no ultraconservadorismo.

Diante desta lacuna que abrange discursos científico e acadêmico sobre a sexualidade no contexto da COVID-19 e a insuficiência de diretrizes específicas nas políticas públicas, a pesquisa interdisciplinar “SEXVID – Sexualidades e gestão de risco no contexto da pandemia de COVID-19” busca mapear e entender as práticas sexuais dos brasileiros e suas alterações durante a pandemia.

Em sua primeira fase, contou com entrevistas de aproximação para entender como as pessoas tinham relações sexuais durante a crise sanitária. A partir destas entrevistas, consolida-se o pensamento na pesquisa de que há uma relação com o vírus. Ou seja, não se dão práticas sexuais para além ou aquém do vírus, mas em uma relação com o vírus. Portanto, passamos a tentar compreender como se organizam, como se articulam os inúmeros elementos nas práticas sexuais com o vírus, uma vez que eles permanecem em nosso cotidiano em plena mutabilidade.

Na segunda fase, entre os meses de julho e outubro de 2021, foi aplicado um questionário em 2119 pessoas com idade média de 32 anos, de diversas regiões, orientação sexual e de gênero, buscando uma representação da diversidade brasileira. Estruturado em 7 eixos e com questões que compreendiam: dados sócio demográficos incluindo mapeamento de comorbidades, infecções pelo coronavírus e status da vacinação; políticas de contenção/prevenção locais; conhecimentos, atitudes e práticas sobre o coronavírus; experiências sexuais; uso de tecnologias para encontros sexuais; e saúde mental, com perguntas específicas sobre vulnerabilidades referentes à população LGBTQI+.

Análises preliminares do perfil dos respondentes mostram que a maior parte se concentrou nas regiões do Rio de Janeiro (20,60%), São Paulo (16,5%), Minas Gerais (14,7%) e Rio Grande do Sul (13,2%) – aproximadamente 65% da amostra concentradas no sudeste e sul. A partir disso, é importante salientar que apesar dos esforços em divulgação da pesquisa, mais de 12,6 milhões de domicílios ainda permaneciam sem internet na PNAD de 2019 o que pôde ter impactado no perfil dos respondentes. A exemplo, podemos citar que o Sudeste ainda lidera a porcentagem de domicílios tanto de áreas urbanas quanto rurais com acesso à internet.  Para além da concentração dos dados no Sul/sudeste podemos citar a maior quantidade de pessoas que se autodeclararam brancas (61,4%) seguidas por negros (21,5% pardos e 14,1% pretos) seguido por pessoas que se declararam amarelas e indígenas. Esse recorte de maior número de pessoas brancas na amostra parece combinar com o número de pessoas com pós-graduação. Por exemplo, apesar de as pessoas negras serem a maioria no país (52,9%), segundo os dados do IBGE, essas pessoas foram apenas 28,9% dos números estudantes de pós-graduação no país. 

Outros dados de caracterização interessantes são de que apenas 23,3% dos respondentes precisaram mudar de ocupação durante a pandemia e ainda a grande maioria teve a possibilidade de trabalhar e estudar de maneira remota. Além disso, 32% dos indivíduos relataram receber pelo menos 2 salários-mínimos. Também, não foram diagnosticados com a covid quase 80% da amostra. Somente a caracterização dos respondentes já nos apresenta um quadro de desigualdades estruturais até mesmo no acesso às pesquisas relacionadas à covid-19. Este é um dos motivos que em análises posteriores quadros teóricos como a interseccionalidade e os estudos de gênero servirão de guia interpretativo para as entrevistas e dados relativos às montagens e vivências sexuais durante a pandemia. As intersecções assim como efeitos da política e do gerenciamento dos desejos serão melhor exploradas nas entrevistas que iniciam a terceira fase do estudo.

Olhar para as cenas em que os encontros sexuais acontecem é perceber a articulação de certezas provisórias, que conjugam negociações sobre as temporalidades (entre a observação de sintomas, o tempo de espera de testes, por exemplo) e as espacialidades (os trajetos e deslocamentos mais seguros para os encontros, as posições sexuais com menos contato, a ventilação do ambiente). É observar também formas híbridas de encontros sexuais, a partir da intensificação do uso de redes sociais (como afirmado por 52,3% dos entrevistados) e aplicativos de encontros (36%), não somente para sexo offline (sexting, troca de imagens e vídeos), mas para a investigação e seleção de parcerias que compartilhem modos de prevenção e negociem riscos. 

Pensando na complexidade e pluralidade das sexualidades e práticas sexuais buscamos nesta pesquisa, compreender como as montagens das formas de gestão do risco e sexualidade se entrelaçam à distribuição desigual das vulnerabilidades no país. 

Para mais informações, acesse aqui

 

1 – Flávio Henrique dos Reis Soares. Mestre em Psicologia pela UFMG. Doutorando do Programa de Psicologia em Psicologia Social e Psicólogo Clínico. Atua como professor na PUC Minas e faz parte do Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT+  da UFMG. 

2 – Marco Aurélio Máximo Prado. Doutor em Psicologia Social pela PUCSP. Professor na Fafich/UFMG. Coordenador do Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT+ da UFMG.

3 – Rafaela Vasconcelos Freitas. Mestre e Doutora em Psicologia pela UFMG. Pós-doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da UFRGS, onde também atua como professora colaboradora. Íntegra NUPSEX/UFRGS.


Imagem de destaque: Sexvid

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *