“Com essa habilidade, como você não entrou para a escola de arte”?

Meritocracia e desigualdade social em Parasita

Alexandra Lima da Silva

Uma janela.

Abaixo dos olhos, uma família se escondia.

Quatro pessoas adultas tentam sobreviver num porão escuro.

O filho mais velho tenta se conectar com o mundo, mas o vizinho “generoso” mudou a senha do Wi-fi. Apesar da pouca luz, é possível ver quadros na parede. Num deles, uma medalha indica tempos de glória. No outro quadro, a foto dos tempos em que o pai era atleta.

O que aconteceu com essa família? Onde essas pessoas viviam antes de ir morar num porão?

Pelas caixas e pelos muitos móveis, é possível perceber vestígios de uma outra vida. É possível perceber que se mudaram muitas vezes. Possivelmente, foram despejados muitas vezes…

Foram expulsos e colocados à margem por uma sociedade que não quer ver que nossa forma de viver não é justa. O sol não é para todos. O filho e a filha, jovens, tentam se conectar. Se conectar. Com quem? Onde? Os jovens apenas acreditam que vão conseguir. Eles têm um plano. O pai espera. Está cansado. Deixa que os filhos lutem. Deixa que os filhos nadem. Ele apenas sobrevive.

O filho se conecta com um amigo, que o indica para um emprego. O filho não acredita ter as qualificações.

Mas o amigo lhe diz: “incluindo o serviço militar, você fez quatro vezes a prova de admissão para gramática, vocabulário, composição, conversação… E quanto ao Inglês, você ensina dez vezes melhor que qualquer um daqueles bêbados universitários babacas”.  Mas o jovem não tem diploma. A irmã, talentosa, ajuda na obtenção de um por meio de Photoshop, para a surpresa do irmão:

“Minha nossa…com essa habilidade, como você não entrou na escola de arte?

Com essa habilidade, essa jovem deveria estar em Oxford, não num porão…. Mas quem merece viver num porão?

Burlar as regras num mundo em que as regras foram criadas para excluir a maioria. Não vencem os melhores. Vencem os mais interessantes para o sistema… Mas o jovem ainda acredita que o sistema é justo. Que um dia, ele vai conseguir um diploma “de verdade”. Porque ele é merecedor. E ele irá se esforçar…

Assim como na parede dos pobres, a parede dos ricos também ostenta fotos de êxitos: casamentos, prêmio de inovação, sucesso pessoal e profissional. Não são fracassados. Nessa lógica, os pobres são os fracassados. Os pobres merecem viver no porão.

Ninguém merece viver no porão.

O  aclamado filme do diretor sul coreano Bong Joon-ho é incômodo porque coloca em evidência algo que deveria ser escondido. Em Parasita, a desigualdade reside nas sutilezas. Mas a desigualdade não é natural. Ela é socialmente construída. A ideia de meritocracia é parte da lógica de legitimação da desigualdade. Esse sistema joga muitos no porão, sem direito a luz do sol, água e ar, para que poucos possam viver na superfície.

Precisamos acreditar na ficção da meritocracia. E também as pessoas em situação de maior vulnerabilidade acabam por reproduzir essa mesma lógica. Muitas se negam para ser aceitas.

É preciso se disfarçar.

Mudar de roupa.

Mudar de pele.

Mudar de cheiro.

Se camuflar.

Não mais existir.

Para apenas sobreviver.

O filme Parasita incomoda porque mostra que a igualdade não é para todas as pessoas. Por mais que sejam talentosas. Não há lugar pra todo mundo no mundo da competição e do capitalismo meritocrático.

No final do filme, eu também preferi embarcar nos delírios do jovem que acredita que se estudar e trabalhar duro, um dia vai conseguir salvar o pai que sobrevive num porão.


Imagem de destaque: CJ Entertainment/Divulgação

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