Coincidência literária

Luciano Andrade Ribeiro

Era maio de 2010 quando, na faculdade que fazia, um trabalho exigiu leitura atenta da obra Biopolítica, do filósofo francês Michel Foucault. O dinheiro curto na época obrigou-me a achar o livro em um sebo, do outro lado da cidade, cujo único exemplar estava à minha espera. A conquista desse bem acadêmico tão precioso me fez acordar cedo, tomar um ônibus e iniciar uma saga geográfica por minha cidade. 

Devidamente abençoado pela Santa Inês que nomeava meu bairro, parti rumo ao Foucault. Depois de muitas voltas e paradas, fui surpreendido por outra e não menos sacra Santa Tereza, nome do bairro em que uma passageira significativa entrou e se sentou no banco à minha frente. Digo significativa pelo que ela deixava transparecer ser, na hora que a vi: uma universitária, descolada, inteligente e segura. Pacote completo de características que desejava para mim mesmo.

O sacolejo do ônibus me deixava meio nauseante, mas nada impedia que eu tentasse observar todos os ângulos daquela pessoa que media, mais ou menos, 1,60 m, tinha cabelos claros, quase ruivos, uma pele sardenta, sobretudo na bochecha, e um vestido super adequado para aquele calor que, estranhamente, vivíamos naquele mês de inverno.

Um novo passageiro entrou e, por coincidência ou não, era amigo da colega de banco dessa pessoa que tanto observava. Além de todas as qualidades que mencionei, ela era gentil e, mais que depressa, ofereceu seu lugar para o rapaz. Essa decisão a levou a ocupar o banco de trás, isto é, o meu, que, por sua vez, tinha um assento vazio. A minha pressão deve ter subido na hora, pois o meu batimento cardíaco acelerou junto com o motorista do ônibus que tomou conta de uma rua em declive. 

Para tentar disfarçar toda a aflição que comecei a sentir, abri um dos muitos livros que sempre carrego na mochila. Folheando-o aleatoriamente, a minha nova companheira de viagem foi precisa: “você também gosta do Bartolomeu Campos de Queirós?”. E ela não parou por aí não: “esse livro Por parte de pai mexeu muito comigo quando li, pois parece ser a história exata do meu avô”. Não havia, até então, conseguido expressar um movimento ou palavra, apenas um sorriso de assombro por tamanha extroversão. 

Depois de um silêncio ensurdecedor de alguns minutos, tomei coragem e engatei minha primeira frase depois daquela íntima introdução que recebi: “coincidência você gostar desse livro porque ele me traz a mesma sensação sobre meu avô”. De pronto, ela rebateu: “coincidência nada, não existe isso. Alguma coisa no universo nos fez ter essa conversa aqui agora. Ah… meu nome é Luísa. E o seu?”. 

A intensa vida que acontecia no entra e sai daquele ônibus, os caminhos pelos quais passava e até o desconforto da viagem cambaleante se perderam naquele tempo e espaço. Na hora, lembrei da mensagem de outro escritor mineiro, de quem também tanto gosto, o Fernando Sabino, que, sabidamente, disse que “o valor das coisas não está no tempo que elas duram, mas na intensidade com que acontecem. Por isso existem momentos inesquecíveis, coisas inexplicáveis e pessoas incomparáveis”.

Até tomar consciência que estava vivendo ali um momento inesquecível, uma coisa inexplicável e com uma pessoa até então incomparável, tive vários devaneios, produzi muitos suspiros profundos e excessivo suor pelas mãos. Passada a abdução, o Pedro aqui se apresentou para Luísa. Dentre as muitas coisas que falamos, soube que ela já era professora, que tinha se formado numa faculdade de Letras, usava livros do Bartolomeu Campos de Queirós nas aulas e que estava a caminho da casa do irmão. E, no sacolejo insistente do ônibus, contei pra ela toda a saga para a compra do livro do Foucault, autor que ela já tinha ouvido falar, mas nunca tinha lido. 

Dos assuntos da ordem do dia, passamos a falar de muitas outras coisas, de coisas bonitas, de coisas feias, de poesia, de notícias, de futuro, de presente. O coração ficou encharcado de tanto bem querer. E fez com que o tempo transbordasse ali naquele lugar incrivelmente mágico e, por isso, encantado, que, de uma hora pra outra, passou a nem ter pontos a se descer. 

Mesmo dizendo que coincidências não existem, só sei que eu e Luísa enlaçamos nosso caminhar ali naquela manhã de maio e já estamos juntos há 11 anos. O ônibus, a prosa dentro dele, a sintonia de tudo que falamos só vieram provar que encontramos, um no outro, a vontade de ver o mundo juntos. Afinal de contas, “a beleza é tudo aquilo que você não dá conta de ver sozinho”, como diria nosso autor-padrinho. 


Imagem de destaque: Pxfuel

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