Benzedor de piedades

Ivane Perotti

A Catira mal começara. Duas longas filas de homens maduros. Um frente ao outro. Se fazia ouvir o tradicional assovio de Seu Nico. Era ele que dava o tom aos catireiros. Os violeiros e a pequena orquestra atendiam ao rasqueado. Antigos na performance. Jovens na confraria do cateretê. Era o povoado chamando para a dança do sábado à tarde. Dança de muitos fôlegos! Escova. Serra acima. Serra abaixo. Até chegar ao levante: muitas batidas nas mãos e nos pés. O recortado antecipava o clímax. Gentes vestidas de belezuras. Prontas para a prosa. Feitas para a dança.

Cedo, como de costume, Seu Nico cumprira o combinado: de casa em casa, de morador a morador, levara o convite. No bico. Na boca. Contava o visto. Avistava o contado. Assim corriam as notícias. Todos os dias do ano. Todos os anos no correr de seus dias. A vila não era grande. Jamais reclamara. O acordo nascera com ele. Desde pequeno, devoto de São Cristóvão, carregava a arte no sangue. 

– Ô, Seu Nico!? São Cristóvão é padroeiro dos viajantes. – questionavam os mais afoitos.

– Ó, meu filho? E eu sou o quê?   – respondia o menestrel das piedades.

Mas olha aí, Seu Nico! Artista não tem santo?

Tem, meu filho! Falta o tar Genesinho chegá das Roma por onde se meteu

Deixa o homem quieto, Eribaldo. Não inventa futrico entre os santo. Deixa Seu Nico levá as palavra e as arte! Deixa! Vá em paz, Seu Nico!

Ele ia em paz. A pé. Percorria cedo as ruas da cidadezinha, benzendo o dia, aqui e lá. Quem já saudara o sol, ganhava abraços, ou a última escrivinhura. Da caixa de fortunas saltava um verso. Uma estrofe. Uma benção. Um lenço de cobrir as orelhas. De preferência vermelho. Encarnado de cor e uso. Seu Nico carregava vantagens. Piedades. Destilava empatias. A cada qual um centavo de arte. Uma notícia.  Comentário. Acontecido. Convite. Uma chaleira esquecida no fogo. Rebuliço na casa do contra. Quem sabe, uma morte a acender a cruz da igreja. Sabe lá! Tudo acontecia por ali. Ali, o tudo acontecia. Para alguns, o artista nascera de um combinado entre as palavras e as coisas do mundo. Nascera teatro, música, dança, verso, repente e essas outras riquezas de que dependem os homens para salvarem-se dos infernos da realidade.

Mas… de quem foi a ideia d’ele chamar a cidade, assim, tão cedo do dia?

– Todos os dias…

– Pois então, ele nasceu assim! Ninguém pediu, não! É coisa dele prá com ele mesmo!

– Seu Nico é um artista de mão cheia.

– Venta cheia! das mais cheia qui já se viu!

– Ah! Se é… souberam da última?

Histórias de Seu Nico viravam histórias da cidadezinha. O compromisso de “acordar a cidade” era tão seriamente seguido que, em tempos de festa, o artista apresentava-se com rica fatiota: terno de risca de giz, gravata encarnada na borboleta larga, sapato de bico fino e lustro demorado. Mas eram as meias do homem a ganharem atenção à prova de desafetos. Amarelas. De um amarelo-ovo tão vivo que era impossível deixar de mirá-las. Subiam a canela e ostentavam o bordado de três letras em linha grossa: N.F.A. Letras de curva antiga. Bem traçadas. Linha preta. Lustrosa. E todo o segredo de Seu Nico se resumia na última delas. Uma vogal. Sozinha. Nada além dela. Nadinha. Nicolacópulus Feliciano A

A…de Amilton. Amâncio. Amandito. Avelino?

Não! O sobrenome dele é Nicolacópulus. Tendeu?

Nenhum consenso. Nem uma só palavra negada ou conferida. Mudava o rumo da prosa na hora das tentativas. Nem cara feia. Nem boa. Só mudava. Saltava feito fêmea canguru vermelho. Dava para sentir o vento arrodeando o salto. Um zunido fino. Certeiro. Vápiti! O assunto já era outro. A cor das meias permanecia no imaginário público junto da vogal pendente. Pendente de significado. História sem broa. Cutucava os mais curiosos. Andava na boca das crianças. Até na sala de Dona Julinda, professora dos alfabetéticos. Os pequititinhos chegavam sabendo do A. A do Seu Nico. Não! Nico não tinha A. Mas o nome dele tinha. Tinha e ele não contava de que. 

De amor, psora!

É, poderia ser. Mas não conheço nenhum nome assim… assim...

De amor, né? Meio estranho!

– Meio, nada! O Seu Nico é estranho! Sempre carregando aqueles balucraquis.

– Badulaques. 

– É, isso aí! Muito estranho.

– Ele é um artista de nascimento. Sabe dançar, cantar, faz poemas e…

– Fofocas. 

– Não mesmo! Ele leva as notícias, né psora?

– Então, agora ele é jornalístico também?

– Jornaleiro… Gomercindo!

– Jornalístico…quem lê o jornal, fessora!

– Mas aqui não tem jornal.

– Tem o Seu Nico!

Não era assim tão simples. Seu Nico pertencia a outra estirpe. Chapéu de feltro antigo: escovado a fio de navalha cega. Roupas dependuradas no século passado. As meias amarelas. Aquelas iniciais intrigantes. Havia um pouco mais para além de todas as habilidades artística do homem.

Então!? Ô pessoar… eu arrevirei uns arquivo lá do Paço, e…

– Ah!  Nem… de novo? Cê não disisti, Pena?

– Pena, não! Plumas… nas mão! Muita delicadeza prá foiá aquelis decumento.

– Ocê gosta di inguli pó! Isso sim!

– Pois eu adescubri que…

– Que??

– Seu Nico já foi porteru!

– …

– Não!

– Foi!

Continua… 


Imagem de destaque: Jean Marconi

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