As Sátiras e outras subversões de Lima Barreto

Joachin Azevedo Neto1 

Reginaldo de Oliveira Martins2

A obra do carioca Lima Barreto, nascido em 1881 e falecido em 1922, foi estudada por especialistas de diferentes áreas sob uma perspectiva dialética que compara literatura e vida do escritor. Sendo assim, grande parte da bibliografia especializada estabelece comparação e diálogos constantes entre a biografia e a escrita do autor. Grande parte dessas abordagens endossam que entender a atualidade das dramáticas denúncias de Lima é fundamental para uma compreensão crítica da modernização nacional.

Recentemente, Felipe Botelho Corrêa, professor do King’s College London, publicou uma antologia intitulada Sátiras e outras subversões com 164 textos inéditos de Lima Barreto. As crônicas foram publicadas, originalmente, na revista de variedades Fon-Fon e Careta do início até o final de sua carreira literária. Esses escritos permaneceram desconhecidos por tanto tempo devido ao uso, por parte do autor, de pseudônimos como Jonathan, Isaía Caminha, Eran, Barão de Sumaret, Lucas Barredo, Horácio Acácio, Inácio, Amil, Pingente, Xim, J. Caminha, dentre outros. 

A prática de ocultar a autoria era comum entre jornalistas e escritores brasileiros desde a circulação dos primeiros impressos, porque mostrou-se um valioso recurso para que esses letrados pudessem lançar polêmicas contra seus pares ou a política oficial diminuindo as chances de represálias. Nesses termos, são necessárias mais leituras em torno do alto valor documental da antologia elaborada por Felipe Corrêa, pois são fontes históricas capazes de ser interrogadas como testemunhos sobre política, cultura e sociedade na Primeira República.

A sátira barretiana se caracterizou essencialmente pela ironia e sarcasmo. Foi o estilo literário usado pelo escritor carioca para provocar e promover críticas diante das constantes injustiças sociais, principalmente ligadas ao exercício do poder entre os homens: “A troça é a maior arma de que nós podemos dispor e sempre que a pudermos empregar é bom e é útil. Nada de violências, nem barbaridades. Troça e simplesmente troça, para que tudo caia pelo ridículo. O ridículo mata e mata sem sangue”. E acrescentou: “É o que aconselho…” (BARRETO, 2016, p 13-14).

A sátira enquanto estilo literário militante e denunciativo ganhou espaço na dinâmica do jornal e estava presente também em folhetins, revistas e periódicos. As tensões sociais vivenciadas na capital carioca forneciam bons motes para toda uma gama de jornalistas. Assim, Lima se aproveitou muito bem das polêmicas, se dedicou à arte satírica de anunciar, revelar, escandalizar e debochar dos problemas políticos e socioculturais que o Rio de Janeiro (Capital Federal) enfrentava.

Em muitos dos textos de Sátiras e outras subversões, encontra-se a principal marca artística desse escritor que é o autobiografismo diluído em um mosaico de confissões, ironias e desabafos políticos. A descrição do cotidiano nos morros e subúrbios cariocas, a leitura ferina das elites republicanas e de seus projetos de controle social se entrelaçam com narrativas sobre a própria vida de Lima. O autor de Isaías Caminha, portanto, foi marginalizado – tanto intelectual, quanto socialmente – porque se posicionou contra injustiças sociais perpetradas pelos poderes institucionais da Primeira República por meio de um estilo polemista de escrita e sofreu na própria pele os estigmas do racismo, alcoolismo e do silenciamento.

Em crônicas assinadas pelo pseudônimo Jonathan, por exemplo, essa tendência em tratar de problemas cotidianos e questões políticas é bastante presente. Na crônica “Velha queixa”, publicada, originalmente, em 13 de novembro de 1920, Lima demonstrou toda a sua indignação contra a gestão do então prefeito Carlos Sampaio (1861-1930). O mandato desse prefeito, de 1920 até 1922, foi caracterizado pela implosão do Morro do Castelo: área urbana habitada na maioria por pessoas pobres e negras que estava na mira da chamada “Regeneração carioca”:  

O sr. dr. Carlos Sampaio é um prefeito extraordinário que anda por toda parte deste Rio de Janeiro e quer arrasar todos os morros desta cidade; mas esquece de muitas coisas que merecem a atenção de tão conspícua pessoa. É preciso que sua excelência saiba que o Rio de Janeiro não é Botafogo e Tijuca. Há mais alguma coisa. (BARRETO {Jonathan}, 2016, p. 370). 

Lima Barreto denunciou o destrato com o qual as autoridades públicas (policiais, engenheiros, médicos e equipes sanitaristas) agiam nos bairros pobres e distantes do centro urbano do Rio de Janeiro. Em texto assinado com o pseudônimo Eran, na revista fon-fon, de 01 de junho de 1907, o escritor já abordava de maneira mordaz o tema das reformas urbanas. Ridicularizando as iniciativas políticas “civilizatórias”, bem antes da publicação da crônica “Velha queixa”, Lima chama a atenção dos políticos para a realidade social que existia fora das áreas nobres da então capital federal: 

De Botafogo, sem intermediários, as coisas finam passam aos subúrbios. Nos bondes da Jardim, não se fuma em três bancos; nos trens de subúrbios, em todo um carro de sessenta lugares. (…)

O subúrbio é a terra do sonho, sonho de outras vidas, sonhos de outras idades. 

O subúrbio é espiritista, quando não é medieval. Se requinta, é de modo diferente de Botafogo. Este tem a visão do boulevard, enquanto aquele tem a dos mistérios da morte ou das justas medievais. A elegância em Todos os Santos, a suprema elegância, seria andar de mortalha, chocalhando ossos, ou senão a cavalo ajaezado e protegido, cavalo e cavaleiro, com ferragens pesadas. 

No largo da Carioca, a gente vê um canto de Paris atual, na estação Central. (BARRETO {Eran}, 2016, p. 341 – 342). 

Lima enfatizou constantemente o abandono que os habitantes dos subúrbios sofreram, por parte das autoridades republicanas, durante as constantes mudanças urbanas causadas pelas reformas que caracterizam a chamada bela época carioca. Em meio a um panorama com altas taxas de analfabetismo, desemprego e pobreza, as classes populares foram classificadas como perigosas para a ordem e moral vigente. As chamadas ações sanitaristas/civilizatórias das autoridades públicas no começo do século XX não vieram para incluir pobres e miseráveis em uma lógica cidadã e republicana, mas para reprimir a circulação dessas pessoas nas áreas centrais e condenar práticas e costumes sociais com raízes fincadas em nosso passado colonial e agrário.

A fórmula encontrada pelo poder republicano para impor, de cima para baixo, essa almejada europeização do Rio de Janeiro foi pautada em estratégias de controle e repressão social. As autoridades republicanas desrespeitavam princípios básicos de cidadania, por exemplo, ao colocarem em prática o projeto de bota-abaixo de cortiços e barracos próximos ou localizados no centro do Rio de Janeiro sem indenizar seus moradores. Essas pessoas passaram a buscar refúgio, carregando, muitas vezes, escombros de madeira e zinco, retirados das demolições, nos morros que circundavam a então capital do país. 

Lima emitiu críticas contra as elites do Rio de Janeiro por se voltaram para Paris e passaram a grassar a imprensa da época com devaneios sobre como seria viver e morrer na cidade das luzes. Os letrados vinculados ao pensamento dominante buscaram legitimar a existência de um tipo de nobreza doutoral, amparada em títulos acadêmicos, cercada de privilégios e constituída por homens formados nas escolas superiores de Medicina, Direito ou Engenharia.

A indignação barretiana contra autoridades públicas que deixaram desabrigados entregues à própria sorte e intelectuais que estiveram maravilhados com esse projeto excludente de modernização da capital federal está presente na maioria das páginas de Sátiras e outras subversões. Poucos escritores do período se importaram com a arraia-miúda da população que perdeu suas moradias para as equipes de demolição da prefeitura. A atuação de Lima enquanto cronista e observador da vida urbana e cultural na capital carioca pode favorecer inúmeras reflexões sobre a história do Brasil republicano e suas contradições, como a permanência do racismo estrutural, autoritarismo e da ausência de cidadania na vida pública e privada do país.

1 – Professor Adjunto de História da Universidade de Pernambuco – UPE/Campus Petrolina. Coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisa em Política e História Literária – GEPPHIL.

2 – Professor de História do Instituto de Educação Comenius e do Colégio Luis Eduardo Magalhães na cidade de Senhor do Bonfim/BA. Graduado em História pela Universidade de Pernambuco – UPE/Campus Petrolina. 


Imagem de Destaque: CompanhiaDasLetras/Divulgação

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