A “pobreza menstrual” e a negação de direitos às mulheres

Renata Duarte Simões

No dia 7 de outubro de 2021, o presidente Jair Bolsonaro sancionou a lei que institui o Programa de Proteção e Promoção da Saúde Menstrual, mas vetou a distribuição gratuita de absorventes íntimos, aprovada em setembro pelo Congresso Nacional. Foram vetados os artigos 1º e 3º, que previam a entrega do item de higiene para estudantes de baixa renda matriculadas em escolas públicas, mulheres em situação de rua ou em situação de vulnerabilidade social extrema, presidiárias e apreendidas, e mulheres internadas em unidades para cumprir medida socioeducativa. Bolsonaro também vetou o trecho que incluía absorventes nas cestas básicas distribuídas pelo Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional.

O argumento utilizado pelo presidente para o veto, entres outros, é de que não há recursos para a aquisição de absorventes. O texto aprovado previa que as fontes para o custeio dessa medida seriam as contas de dotações orçamentárias disponibilizadas pela União ao Sistema Único de Saúde (SUS) e, no caso das detentas, ao Fundo Penitenciário Nacional (Fupen). O projeto de lei, de autoria da deputada federal Marília Arraes (PT-PE) e coautoria de 34 parlamentares, pretendia atender 5,6 milhões de pessoas que menstruam e estimava-se um custo de aproximadamente R$119 milhões ao ano.

A ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, defendeu o veto de Bolsonaro à distribuição gratuita de absorventes e disse a repórteres, em agenda no Paraná, que é preciso escolher qual será a prioridade, a vacina contra Covid-19 ou os itens de higiene. Em defesa ao presidente, alegou que as mulheres pobres sempre menstruaram e que, até então, nenhum outro presidente havia se preocupado com isso. A ministra também afirmou que há um programa do governo federal que ofertará os itens “na hora certa”, pois atualmente todo orçamento do Ministério da Saúde é direcionado para remédio e vacina.

A decisão colocou em destaque o debate sobre “pobreza menstrual”, agravada pela pandemia, e a dificuldade de promover políticas públicas capazes de acolher esse público. Com o veto, Bolsonaro voltou a ser acusado de politizar questões de saúde, como vinha/vem fazendo com as medidas de prevenção e combate ao Covid-19, deixando parecer que se importa menos com a vida e a dignidade das pessoas e mais com as pautas conservadoras que possam lhe garantir uma reeleição em 2022. Nesse sentido, nega às mulheres pobres do país mais um direito básico e condena-as ao uso de artifícios inseguros, como pedaços de pano, folhas de jornal, papel higiênico, entre outros, para que possam transitar e utilizar os espaços públicos, já que não podem sujar os bancos das praças e das escolas com a menstruação. Contudo, a utilização de itens inadequados pode causar infecções e até lesões graves nos órgãos reprodutores femininos.

Há séculos, mulheres sofrem violência no Brasil, de gênero, sexual, institucional, familiar, moral, física, verbal, e têm seus direitos negados, resultados de uma sociedade de origem escravista e patriarcal. Ainda que muitas conquistas na luta pela equidade de gênero tenham sido alcançadas, permanece a desigualdade social entre homens e mulheres, destacadamente em relação às mulheres pobres, pretas, periféricas, indígenas, marginalizadas, excluídas, que acumulam marcadores de desigualdade. Nesse sentido, o veto à distribuição dos absorventes gratuitos constitui-se como mais uma dentre tantas negações de direitos às mulheres. 

Historicamente, na sociedade brasileira, as diferenças biológicas foram/são mobilizadas no intuito de fundamentar as diferenças sociais e, nesse sentido, elementos distintos do ser masculino em comparação ao ser feminino são enaltecidos, enquanto as semelhanças são estrategicamente ignoradas e as distinções femininas, muitas vezes, são depreciadas, colocando as mulheres numa condição de inferioridade. Com base nos preceitos dessa sociedade misógina, a menstruação ganha a conotação de sujeira, de descuido, cuja aparição pública deve ser evitada a todo custo. Tal concepção leva ao envergonhamento, para fazer com que mulheres se sintam inadequadas em relação aos seus corpos, sua biologia, sempre colocados como inferior e débil, e para que suas funções naturais sejam vistas como ofensivas. 

A impossibilidade de adquirir absorventes impede que muitas meninas frequentem a escola no período menstrual. Assim, o combate à “pobreza menstrual”, que afeta milhões de estudantes, requer a atenção e ações dos agentes públicos no sentido de viabilizar que meninas tenham garantido o direito de estar na escola durante todo o ano letivo. De acordo com o relatório apresentado pelo Fundo da População das Nações Unidas (UNFPA) e Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), intitulado “Pobreza Menstrual no Brasil: desigualdade e violações de direitos”, mais de 4 milhões de jovens não têm itens básicos de higiene nas escolas quando estão menstruadas e 713 mil delas vivem sem acesso a banheiro ou chuveiro em seu domicílio, o que impossibilita a higiene adequada e gera implicações sérias para a educação e a saúde a cada ciclo menstrual. 

Segundo pesquisas realizadas por empresas privadas, as estudantes brasileiras de escolas públicas chegam a perder até 45 dias de aula por ano devido à falta de acesso ao absorvente e de saneamento nas próprias residências e nas escolas. A ausência dessas meninas pode prejudicar a aprendizagem e negligencia o direito humano à educação, amparado por legislações nacionais e internacionais.

Com intuito de apoiar e divulgar projetos de lei para a inclusão de absorventes, coletores menstruais e demais itens semelhantes e necessários à saúde e higiene da mulher na “cesta/bolsa básica da mulher”, assim como de elaborar propostas de redução dos tributos incidentes sobre os itens que compõe a bolsa, a iniciativa #AmeSeusCiclos, do movimento Tributo a Elas, tem se mobilizado e produziu a cartilha intitulada “Ame seus ciclos”, buscando auxiliar meninas e mulheres a entenderem o ciclo menstrual e a conhecerem o próprio corpo. 

Ainda que diferentes grupos apresentem preocupações com as questões que envolvem as mulheres, como o direito à higiene pessoal digna, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos não tem realizado debates sobre temas relevantes e caros às mulheres, como aborto legal e métodos contraceptivos. Pelo contrário, esse Ministério faz coro às medidas conservadoras adotadas pelo governo vigente, que despreza mulheres e as enxerga como uma “fraquejada”. A pergunta que permanece é: até quando as mulheres brasileiras terão que esperar a “hora certa” para serem tratadas com dignidade e respeito, que são direitos humanos fundamentais de qualquer indivíduo? 

A “hora certa” parece nunca chegar. Avançamos em conquistas de direitos, avançamos em termos de legislação, com a Constituição Federal de 1988, com a Lei 11.340, popularmente conhecida como lei Maria da Penha, com a alteração na lei do estupro, a lei do feminicídio, a lei de importunação sexual, e outras, mas ainda lidamos com práticas de violência diária, em uma sociedade que entende os corpos das mulheres como propriedade e as colocam numa posição de inferioridade em relação aos homens, visão que é fruto do patriarcado histórico e que precisa ser combatida pelo poder público nas diferentes instâncias, inclusive nas escolas, dado que a educação é uma das vias em potencial para problematizar e alterar essa lógica. Que possamos seguir firmes na luta pelos direitos das mulheres, contra os retrocessos e as injustiças sociais, fortes na ideia de que essa luta é de todos e de que “ninguém larga a mão de ninguém”!


Imagem de destaque: SukyungAn

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