As lições malditas de Charles Baudelaire (1821-1867)

Joachin Azevedo Neto

Baudelaire acreditava que a arte era fruto de múltiplas trocas entre a paisagem, o artista e o consumidor. Apesar de possuir uma origem social abastada, o escritor teve uma relação conturbada com a mãe e o padrasto: o austero tenente-coronel Jacques Aupick, que se preocupava bastante com o destino dos bens da família dada a inclinação do enteado para participar de noites de bebedeiras e frequentar bordéis parisienses, no melhor estilo decadent. Em termos de preferências políticas, apesar de ser republicano e participar das barricadas em 1848, Baudelaire desencantou-se com o liberalismo e foi perseguido pelo Estado por causa dos poemas que reuniu, em 1857, sob o título de As flores do mal.

O fato do escritor ter ido parar com As Flores do mal no banco dos réus teria sido causado por uma preocupação oficial em relação ao teor erótico dos poemas ou ao teor político? O historiador Peter Gay, em Marginais por profissão, reforça a interpretação do procurador da República francesa em relação aos poemas do escritor, ao analisar apenas as estrofes mais obscenas dos versos. Já para Dolf Oehler, também historiador, em O velho mundo desce aos infernos, durante o julgamento de Baudelaire, quer se trate de generosidade, superficialidade ou cálculo, foram totalmente ignoradas as implicações de crítica social dessa lírica. Nesse sentido, A perspectiva mais coerente com o próprio conteúdo polêmico, erótico e – muitas vezes – satânico, de As flores do mal, indica que esses poemas possuem sérias implicações políticas.

A primeira poesia que abre o livro é uma provocativa dedicatória de Baudelaire aos leitores. Quem era o hipócrita leitor que Baudelaire chamou de irmão nesse primeiro verso de As flores do mal? Trata-se de uma fina ironia destinada ao público que consumia poesia na Paris oitocentista: os burgueses.

Se o veneno, a paixão, o estupro, a punhalada

Não bordaram ainda com desenhos finos

A trama vã de nossos míseros destinos,

É que nossa alma arriscou pouco ou quase nada. 

(Baudelaire, 1985, p. 99)

Baudelaire trabalha a partir de alta carga simbólica que as palavras possuem e, nesse sentido, o veneno, o estupro e a punhalada, máximas expressões de traição e barbárie estão correlacionadas com um determinado comodismo ou mesmo inércia conservadora. Trata-se, portanto, de versos engajados com a denúncia de um determinado silêncio e, portanto, cumplicidade da alta sociedade parisiense, tida como principal vitrine cultural do mundo ocidental, com os massacres de trabalhadores, ativistas políticos progressistas, desempregados, velhos, mulheres e crianças pobres durante as barricadas parisienses de 1848. Estima-se que foram mortas 1500 pessoas nas barricadas, 3000 trucidadas em suas residências e outras 12000 presas. Eventos sanguinários e cruéis contra o povo francês que foram acompanhados in lócus pelo próprio poeta e também escancarados na imprensa europeia da época pelo escritor Heine (1797-1856) e o chargista Daumier (1808-1879). 

O satanismo de Baudelaire, que atinge o ápice em uma oração destinada ao principal anjo decaído, é sobretudo uma resposta ao discurso contemporâneo da consciência limpa, ao cinismo inconsciente, as hipocrisias que permeiam o cristianismo oficial do suposto homem de bem que aprova crimes de Estado contra minorias pobres e rebeladas. Era contra esses moinhos de vento que Baudelaire combatia. O satânico poeta estava falando do mal não precisamente a partir da teologia, mas a partir de observações da psicologia individual e de experiências históricas coletivas.

Para saber mais:

BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Tradução, introdução e notas de Ivan Junqueira. Edição biligue. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

GAY, Peter. Marginais por profissão. In: Modernismo: o fascínio da heresia de Baudelaire a Beckett. Tradução de Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

OEHLER, Dolf. O velho mundo desce aos infernos: auto-análise da modernidade após o trauma de junho de 1848 em Paris. Tradução de José Marcos Macedo. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.


Imagem de destaque: Charles Baudelaire por Étienne Carjat, 1863. (Domínio Público). 

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