A miopia social e o papel da educação

Daniel M. da Conceição

Nas últimas semanas, foi necessário atualizar meus óculos, avaliar o grau da miopia (enxergar longe) e astigmatismo (enxergar nem perto e nem longe). Trata-se de um procedimento que deve ser realizado com certa frequência por ter origem em uma doença degenerativa. Sua correção só pode acontecer com intervenção cirúrgica, em alguns casos com lentes de contato e, mais comumente, com o uso de óculos. 

Minhas falhas de visão foram observadas por uma dedicada professora quando eu tinha 11 anos. Escrita errada, leitura equivocada e olhos quase fechados ao dirigirem-se ao quadro dispararam o alerta. Alguns familiares usavam óculos, um histórico de doenças da visão existia, mas a família, no primeiro momento, preferia aceitar que os erros eram justificados por outros motivos reconhecidos hoje nas mais diversas síndromes e que, na época, facilmente eram atribuídos a um retardo, má vontade ou falta dela, tachando-me de adjetivos que identificavam os erros pessoais na escola. 

A partir da observação de uma professora sensível aos dilemas de seu estudante, uma nova realidade me foi apresentada. O desconforto dos óculos foi rapidamente superado pelos benefícios que proporcionavam. A pretensão em fazer esse breve relato é para destacar o papel dos professores que atuam sem estar restritos ao ensino do conteúdo, também dedicando atenção aos educandos de maneira singular. Um agradecimento deve ser feito a eles. A experiência com a atualização das lentes dos meus óculos possibilita, igualmente, pensar que a vida em sociedade, sua realidade, precisa de tempos em tempos passar por correção, para não ficarmos com um olhar desfocado, distorcido ou embaçado.

Viver em sociedade significa ser socializado em seus valores éticos, morais e culturais. Dependendo da origem e do itinerário formativo, nosso olhar pode estar melhor ou pior para perceber com nitidez a realidade que se mostra ao longe. Quando aquilo que aprendemos e continuamos a aprender nos chega filtrado e míope, a realidade torna-se embaçada. Nesse caso, apenas quando a realidade se apresenta próxima podemos ver com maior nitidez, desde que não soframos de hipermetropia (enxergar perto) ou astigmatismo.

No contemporâneo, muitas situações podem degenerar nossa visão do social, as famosas fake news, a falta de leitura, o negacionismo, as crenças religiosas, as bolhas sociais, as mídias, a passividade política (neutralidade) etc., estímulos ou sua ausência que podem paulatinamente distorcer a realidade. As pessoas observam o mesmo ponto e podem compreender de maneira distinta em razão de uma visão distorcida. No Brasil atual, grande parte da população necessita fazer avaliação da sua vista.

Não é possível que todos compartilhem a mesma realidade e cheguem a conclusões tão diferentes. Só podemos justificar essa condição observando que a leitura de mundo que as pessoas realizam está desfocada e distorcida. Nessa situação, uma intervenção precisa acontecer através da educação, em todas as suas esferas, iniciando com a correção de idealizar um olhar assistencialista, infantilizado e/ou tecnicista – uma miopia presente no processo de ensino. A educação deve alçar o seu lugar de transformação, sua posição de oftalmologista do mundo social. 

Enquanto a educação não ocupar seu papel na correção do grau de miopia social, as lentes de boa parte da população vão continuar a perceber a realidade embaçada e distorcida. O caráter degenerativo que a miopia carrega pode levar à cegueira quando não tratada ou amenizada. Ao observar os rumos da sociedade brasileira, identifico que já estamos em estágio avançado de perda da visão. Não conseguimos mais ver com nitidez, talvez por esse motivo aceitamos com facilidade as barbáries, atrocidades, aberrações, manipulações e mortes.

Algo que aprendi com o passar do tempo, procurando intervir e corrigir minha visão, com a atualização dos óculos e das respectivas lentes, diz respeito ao preço, ao custo para ver com mais nitidez. À medida que o grau da lesão aumenta, o valor dos óculos se torna mais alto. As lentes necessitam de tratamento específico, se desejarmos que tenham filtro azul (para luz dos equipamentos eletrônicos), que sejam antirreflexo e leves, o que faz tudo mais custoso.

Os processos de sociabilidade e civilidade no país expressam uma visão da realidade muito distorcida, desfocada e embaçada. Chegou o momento da educação, a oftalmologista social, assumir seu papel com as gerações mais novas. Infelizmente, o grau de miopia social chegou em um estágio que requer grande esforço e um custo alto para voltarmos a enxergar com nitidez. Uma intervenção necessária e que não pode ser evitada, pois, cada dia que passa degeneramos a nossa visão mais e mais. 

Nessa metáfora da vida social as consequências nefastas da miopia significam limitações, desesperanças e um sentimento de pesar. A educação pode atualizar as lentes da sociedade para que ela perceba com nitidez a realidade e a beleza da vida coletiva que se constrói no partilhar. Superar a miopia social é essencial para que as reformas e transformações na sociedade possam acontecer de maneira racional e com poucos equívocos. Também é importante entender que uma única ida ao oftalmologista não resolverá o problema. A reavaliação precisa ser constante.


Imagem de destaque: Ivan Radic

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *