A máquina do ódio

Cleide Maciel

Susto, medo, arrepios foram os sentimentos viscerais que me assaltaram logo no começo da leitura do livro de Patrícia Campos Mello (A máquina do ódio: notas de uma repórter sobre fake news e violência digital – Companhia das Letras, 2020). Aos poucos, as emoções dividiram espaço com a razão, contaminada pela lucidez da autora. Não tenho dúvidas de que é uma obra necessária a quem deseja compreender o fenômeno regressivo que vivemos na política nessa entrada do terceiro milênio, potencializado pela pandemia da Covid 19.

A era digital, nos primórdios, fazia crer que, além do encurtamento das distâncias, a comunicação entre as pessoas e o conhecimento do mundo seriam potencializados. Como consequência, a ignorância tenderia à extinção. No entanto, os arautos desses “novos tempos” subestimaram o outro lado da moeda (apesar de alguns alertas, como os de George Orwell, em 1984). A jornalista revela fatos da política – tanto aqueles fartamente divulgados, quanto os que se desenrolaram nos bastidores, bem como ainda outros dos quais participou – que demonstram como os instrumentos do mundo digital são utilizados para semear a discórdia, provocar o medo, abater opositores.

Assim, somos informados das estratégias de desqualificação/distorção da verdade utilizadas por Donald Trump e Jair Bolsonaro – figuras macluhanescas – para “conquistarem” a presidência da república e se manterem no poder. A imprensa como alvo.  Do mesmo modo, as medidas tomadas por outros líderes populistas para fazer valer suas posições autoritárias como Erdogan (Turquia), Orbán (Hungria), Duterte (Filipinas), Ortega (Nicarágua), Chávez e Maduro (Venezuela) e Modi (Índia). Segundo a autora, o populismo é filho do casamento entre a cólera e os algoritmos. A riqueza das fontes de informação registradas nas notas, demonstram seu compromisso com os pressupostos da imprensa profissional. As situações descritas estão fundamentadas e demonstram um extenso e incansável exercício de pesquisa.

Além do trabalho detalhado e intenso para desvelar a maquinaria que produz o ódio e semeia o dissenso, o livro é uma oportunidade para familiarizarmos com expressões próprias do campo digital. Palavras tais como astrosurf/astrosurfing (movimento popular falsificado), bots (robôs), trolls (pessoas contratadas), firehosing (disseminação de uma informação, que pode ser mentirosa, em um fluxo constante, repetitivo, rápido e em larga escala) precisam ser incorporadas em nosso universo vocabular, se quisermos agilizar nossa compreensão na área. E outras mais como impulsionamento e disparo, deepfake, doxxing, gatekeeper, microtargeting ou microdirecionamento, embeds, cyberyodhas, whishful thinking, estratégia de diversionismo…

E a questão das jornalistas, ser mulher, ajuda ou atrapalha? A resposta: ajuda, mas no Brasil, atrapalha. À mulher, é facilitado o acesso ao ambiente familiar, como no caso das guerras, o que possibilita uma compreensão dos conflitos fora do âmbito do campo de batalha, por exemplo. Entretanto, no Brasil as jornalistas são vítimas da discriminação machista (muitos exemplos são apresentados na justificativa dessa posição).

Segundo a autora, para que a mídia se torne mais confiável, é preciso ter transparência e distinguir fato de opinião, ou seja, estabelecer a diferença entre jornalismo profissional e jornalismo militante (jornalismo profissional não é concurso de Miss Simpatia, diz ela!). Em tempos de coronavírus, a mídia precisa enfrentar alguns desafios: fundamentar as notícias que divulga, inventar formas de viralizar as correções das fake news (as notícias falsas circulam com mais rapidez que as verdadeiras) e descobrir como sobreviver sem anunciantes e publicidade do governo (enfim, passar a depender dos leitores).

A leitura desse livro nos coloca frente ao desafio de como agir, como professoras e educadoras. Mais que nunca, precisamos ensinar como se faz, criticamente, o “consumo’ de notícias: estranhar, articular notícias já conhecidas às novas, conferir, ter atenção aos pequenos detalhes que possam fazer disparar nossas dúvidas… E, como no campo da economia, não sermos consumidoras fáceis!

 

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