A docência na linha de frente da pandemia: da queda à virada

Marcelo Silva de Souza Ribeiro

Vou-lhe dizer um grande segredo, meu caro.
Não espere o juízo final. Ele realiza-se todos os dias.

Albert Camus

De tudo ficaram três coisas… 
A certeza de que estamos começando… 
A certeza de que é preciso continuar… 
A certeza de que podemos ser interrompidos 
antes de terminar… 
Façamos da interrupção um caminho novo… 
Da queda, um passo de dança… 
Do medo, uma escada… 
Do sonho, uma ponte… 
Da procura, um encontro!

Fernando Sabindo

Por conta da pandemia de COVID-19, a humanidade tem vivenciado intensas e devastadoras experiências, sendo que muitas delas só serão melhor elaboradas algum tempo adiante. 

Especialmente para os brasileiros, essas experiências ganham sentidos e significados mais vertiginosos, uma vez que há incertezas e inseguranças nos campos político e social, reverberando algo como um pesadelo sem fim ou como uma queda sentida num tempo que se repete.

Essa experiência de vertigem, de queda ininterrupta, tem um lugar particular, sobretudo para aqueles que estão, de alguma forma, na chamada “linha de frente do cotidiano da pandemia”. Além, obviamente, dos profissionais de saúde e outros profissionais como os que se dedicam à segurança e a limpeza pública, etc. há que se considerar os profissionais da educação, especificamente os professores(as). Estes não lidam com as questões sanitárias e nem estão nas alas de UTIS, mas de alguma forma labutam na linha de frente do cotidiano da pandemia, ainda que, majoritariamente de modo remoto. Os(as) docentes vivem uma condição muito especial de trabalho no contexto pandêmico, uma vez que lidam com os afetos dos seus alunos ao tempo que se veem identificados nesses mesmos afetos. Essa linha de frente é de outra natureza, é da ordem da esperança ou da falta dela, é da ordem do saber e do não saber lidar com as dores. 

Os(as) docentes são aqueles e aquelas que, de alguma forma, cuidam das gerações vindouras e da formação humana. Os(as) docentes, num certo sentido, são aqueles e aquelas que acolhem o outro em seus processos formativos lançando luzes de esperanças, acreditando em seus futuros, afirmando seus presentes e resgatando seus passados. Os(as) docentes são, para lembrar algo de Rubens Alves e Paulo Freire, profissionais do sonhar e que alimentam a esperança do vir a ser humano-mais, como um ser-mais possível. Essas são características indeléveis do ser professor(a). Essa profissão é marcada pela aposta na capacidade do outro, no vir a ser do outro, na atualização dos seus possíveis. Não dá para ser docente se não for atravessado por esse viés.

Contudo, nesse contexto de pandemia, particularmente na situação que o Brasil vem passando, parece ser ainda especialmente difícil exercer a docência à medida que o medo, a insegurança e a incerteza não são desdobramentos exclusivos de um vírus em mutação, mas também porque vivemos um desgoverno, ou ainda, uma necropolítica deliberada. 

É fraturante para o professor(a) dar aquilo que ele/ela não tem ou ainda encontrar aquela “aposta no outro” quando é justamente isso que lhe falta. Lembrando agora Freud sobre as profissões do impossível, como o professor(a) pode acreditar, viver a esperança, saber lidar com as dores na relação com os seus alunos se justamente lhe faltam essas disposições? Onde encontrar forças quando já sentimos um corpo em queda? Como podemos ser e exercer a nossa boa docência quando já nos parece exaurir a esperança e nos perder na dor?

Sendo eu professor do ensino superior e orientador/supervisor de estágio, pude sentir tudo isso na pele, digamos assim. Essas “experiências de vertigens e de queda sem fim” também me perpassam. Lembro de um momento com minhas estagiárias onde as notei que estavam expressando seus dilemas no sentido de mediar algum tipo de acolhimento aos estudantes que elas acompanhavam, sendo que as mesmas viviam situações parecidas. 

Foi aí que fui tomado por um entendimento de que temos uma responsabilidade, há uma espécie de chamado em nós que convoca ao outro, ainda que sejamos atravessados por semelhantes dilemas. O reconhecimento desse chamado ao outro, o encontro, é uma oportunidade para evocar também o fortalecimento de todos(as) professores(as) enquanto coletividade, ampliando os níveis de consciência e de ação relativos às suas condições de trabalho. O(a) professor(a) ao reconhecer seu “chamado” na relação singular com o outro pode notar que essa experiência é compartilhada por seus pares e que, a despeito das faltas e das dores, é momento de virada.

Ainda que estejamos vivendo algo parecido com os nossos alunos nesses contextos pandêmicos há algo que pede de nós um sentido outro. A experiência da vertigem e da queda sem fim pode ser uma abertura para esse sentido outro, ou melhor, um outro modo de sentir e elaborar essa experiência, mas não mais como uma queda sem fim, mas como possibilidade de recomeço, de virada, de encontro, de fazer valer a própria situação como uma oportunidade formativa. Desse sentido, da queda à virada, o outro talvez ajude o professor(a) a encontrar esperança na desesperança, a saber lidar com a dor naquilo que é desesperador.


Imagem de destaque: Freepik / pch.vector

 

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