A dança releva, revela-se – em desvelo, a identidade social

Ivane Laurete Perotti

A escada transformou-se em pista. Mão dupla. Tripla. Meio-fio. Sentido único: a cantina dos afetos. Cardápio do dia: abraços em filme… plástico! Isolante temporário. Estratégia criativa. Acordo mútuo. Baseado em fatos reais. Fake News? Non, jamais! Never! pas l’école, jamais!

— Cheguei primeiro.

— Tô na fila desde cedo!

Em negociação, a urgência e a necessidade. Dois anos. Olhos de ver que não viram. Mãos de tocar sem toque. Recolhidas ao plano da suspensão necessária. Tardia. Fatal. Isolamentos da alma. Corpos sem calma. Descosturas. Arremate ausente! Solidões. Baixo cós. Intervalo.

A cantineira preparou banquete. Particular a todas. Todos. Sinestésico. Braços de longo alcance. Mãos em pérolas. Sabedorias. Didática fina. Translúcida pedagogia. Acolhidas de si e do outro. Equação de primeiro grau. Segundo. Matemática discreta. Inteiros. Bacia das Almas. Pratos de aquecer. Corações. Cognição. Altas chaves. Elevadas tecnologias. Crescimento holístico. Aprendizagens integrais. Integradas. Íntegras. Sem miopia.

Diariamente, a vida sublinhava o PPP (Projeto Político-Pedagógico). Bem-alimentados na coletividade, estudantes urgiam fomes imateriais. Assim, seguindo o protocolo sanitário, a escola servia abraços: quentes – para não perder o ponto! sem aglomerar – em respeito às diferenças! fumegantes – em respeito às necessidades! com máscaras – transparentes, para disseminar o real! gratuitos – para incentivar o empreendimento! festivos – para posicionar o adjetivo na relação com a substância. Aristóteles. E a alimentação não parava ali. Os pratos eram servidos ao longo do dia: tecnologias (no laboratório de ciências humanas e práticas sociais); culturas (plurais, com enredos internos e externos); artes (para além dos tipos, conceitos e estéticas), línguas (muitas); linguagens (todas); histórias (em diálogos e contextos); biologias (abertas ao público); leituras (multívocas); física (leis da interpretação); sociologia (praticável). Ao cardápio curricular não se impunha limites. Construía-se. Construindo. Ao sabor dos saberes. Autorizado por Rubem Alves. Magda Soares. Conceição Evaristo e tantas outras. Freire não dorme. Emprega-se em todos os tempos. Modos e formas verbais.

Ao sinal de intervalo, a escada da escola fervia pressas. Agudas. Líquidas. Moventes. Pendentes de realização. Mas naquele dia, havia “um mais”. Um “mais” que desafiava a lógica. A física. A química das esperas em banho-maria que, ali, não passavam da cozinha. Daí a pista de corridas. Metáfora rodante para dizer da ânsia em ver e sentir.

— Tô tremeno! Olha! Ar-re-pi-a-da!

— Isso tudo é bom dimais! 

— E são treze… 

— É um grupão de…

— Bailarinos! Bailarinas!

— Um espetáculo espetaculoso!

— Di rocha!

— Mais do que isso, mano!

— É a dança na vida!

— “Essa” vida eu quero pra mim!

— Tá suavi!

— BH é nóis! 

Esse “mais” era a chegada de um importante grupo de dança à escola que praticava as ciências humanas. Ciências no palco. Ciências…

— Na vida. 

— Na arte. 

—Na vida da arte. 

—Na arte da vida.

— Gosto disso: contração no pedaço!

— Descontração!

— Aí é formação de palavra por prefixo latino, mano! /na/, é /em + a/, sacô?

— Saqui…

— Mandô bem! É isso aí!

— Vamo deixá a morfologia das palavra pra depois…

— Tamo na morfologia do corpo. Regência … coreografia!

— Passos!

— Texto…

— …corpor…corporif…corporificado!

— Poesia em movimento!

Meu…é demais! Tô surtano pra vê…! Tô ansioso demais!

O motivo de todas as motivações já se encontrava na escola. Preparando-se. Estudando o palco. O espaço. Revendo as linhas de cada escrita. Ensaio. Sintaxe das cores. Do som. A marcação dos movimentos. Calculados. Desenhando verbos. Lírica do corpo. Poética das formas. Livres. Rimadas. Grupo. O corpo dançando histórias. Fazendo história. Dançando o mundo. Corpo. Cidadão. Palavras-passo. Tangíveis. Palavras-dança! Audíveis! Pés! Mãos! Troncos! O céu tocando acordes. Acorde! O corpo valsando febres. Agonias. O tempo. Contratempo. Cidadão! Corpo! Luta! Ardente. Reluzente. Companhia.

A escola chorou mantos. Vestiu a pele …da dança. Vestiu-se dança. A escola vestiu-se corpo. Em cada palma, outro aplauso. Mais alegria. Bailarinos e bailarinas voando alto. Palco. Na plateia, a dança-acontecimento! Viva Walter Benjamin! Larrossa! O Jorge! A experiência nos acontece. Não passa. Não se passa a experiência. Ela edi/fica. Dança é monumento! Põe sonhos à mesa da ribalta. Acendam luzes! Luzes ascendem! Sobem! Crescem. Ganham teto. Arquiteto. Sinfonia. Luzes batem à porta do firmamento. Tenazes. Persistentes. Perfeitos arranjos. Música. Harmonia.

Naquela manhã, a escola que pratica afetos, correu escadas. Cresceu mundos. Leu o mar. Colou asas. De voar. Alto. Adelante! Leu e escreveu o Garcia. Dançar é fazer espelhos. Revelação. Resistência. Escritura. Anuncia-se: espetaculoso espetáculo! Na escola, na vida: dançar é arte completa!


Imagem de destaque: Henri de Toulouse-Lautrec / Ballet Dancers

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