A Caserna e o negacionismo à brasileira

Daniel Machado da Conceição

Nos anos 80, músicos como Tim Maia e Cazuza cantavam sobre o Brasil, apresentando as incongruências de uma nação que se constrói em meio a muitos paradoxos. Uma identidade cultural que para Stuart Hall estaria justificada pela pós-modernidade. “O sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável, está se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não-resolvidas” (HALL, 2005, p. 12). Nesse sentido, podemos dizer que o Brasil (Colônia, Império e República) sempre foi “pós-moderno”, embora, nunca tenha levado a sério o que é ser moderno. Um comentário irônico para citar ideias e teorias do Velho Mundo que encontram guarida e são apropriadas de maneiras singulares “na terra que tem palmeiras, onde canta o sabiá”. 

A teoria positivista parece ser uma delas, entretanto, alerto que ela não significa uma mensagem motivacional. O positivismo, para os desavisados, pode até ser confundido com um comportamento vencedor, no entanto, indica uma teoria que valoriza o uso da razão. Seus princípios orientam a sociedade no combate à pandemia da COVID-19, pois exalta a razão e o espírito científico. Logo, um negacionista não pode estar investido de positivismo, é contraditório, no mínimo.

Augusto Comte (1798-1857) foi o idealizador do positivismo. O Iluminismo e a Revolução Industrial proporcionaram transformações cognitivas, sociais e culturais na Europa. Comte observou muitas mudanças na sociedade, identificando um novo modelo social e pretendia que as Ciências Humanas tivessem métodos científicos semelhantes às Ciências Naturais. Sua proposta com base na experimentação buscou uma maior maturidade racional.

Os limites do positivismo estão no teor evolucionista e determinista, na maneira de pensar a sociedade, as intervenções e os resultados esperados. A “lei dos três estados”, fases do desenvolvimento humano, proposto por Comte, indicam um momento inicial teológico, um segundo metafísico e o terceiro positivista, em que a Sociologia se apresenta como disciplina capaz de agregar os outros conhecimentos, além de representar o predomínio da razão. 

Para Comte, a fórmula para o desenvolvimento da sociedade pode ser expressa em: amor + ordem = progresso, ou “amor por princípio, a ordem por base e o progresso por fim”. O positivismo foi muito bem aceito durante o Império nos movimentos republicanos. Os principais líderes militares encamparam ideias que influenciaram a Proclamação da República, deixando uma marca na bandeira do Brasil com os dizeres: “ordem e progresso”, em destaque no centro deste símbolo nacional. A caserna, ao adotar o positivismo, valorizou a razão, o conhecimento científico. Postura que justifica o reconhecimento como instituição técnica e composta por especialistas. 

Nos dias atuais, com seu envolvimento mais que direto no Governo Bolsonaro, o negacionismo comprometeu essa imagem. Militares, entre eles membros do alto comando, afeitos à ciência e à laicidade, contrariam os valores positivistas exaltados pela organização. A técnica deu lugar ao autoritarismo, com ênfase na ordem identificada como disciplina, o controle dos corpos e das narrativas, escancaram a incompetência. A negligência e inépcia não se coadunam com a tradição positivista.

Situação que reflete as contradições de um país que não elege seus representantes pensando em projetos para povo, uma população que prefere votar em pessoas que não reconhecem e nem representam as tradições teóricas ou ideológicas de determinada instituição. O que nos falta é mais positivismo e também positividade. O primeiro, valoriza a ciência, algo tão importante em meio à pandemia, e o segundo, incentiva a continuar acreditando que amanhã será um dia melhor sem esquecer de uma postura crítica que tende a evitar a passividade da espera.

A bandeira do Brasil afirma que ordem e progresso são sinônimas, uma solução para o país. De maneira oportunista, infelizmente, esqueceram do amor, que significa solidariedade. Na Sociologia, solidariedade não significa caridade, mas um sentimento de dependência. Uma postura que reconhece as relações sociais como uma construção coletiva. Todos dependemos de alguém e alguém depende de nós. Nossas ações fortalecem ou deterioram o cimento social, a vida em sociedade.

O amor, então, como um dos fatores presentes na fórmula para o progresso, o qual deve reger as relações humanas, foi ignorado. Sua presença na bandeira brasileira serviria de lembrança e talvez pudesse ajudar a corrigir abjetos e lunáticos sedentos de sangue que se escondem no discurso de ordem e de progresso sem compreender os fundamentos daquilo que acreditam. A caserna se esfacela em contradições ancoradas no negacionismo que mata e deixa morrer a razão e, consequentemente, as pessoas que poderiam ser salvas por ela.

 

Para saber mais: 

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. RJ: DP&A, 2005.

DIAS, Gonçalves. A Canção do exílio.


Imagem de destaque: Jaqueline Roque / Flickr

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *