A cabaça das histórias

 Ivane Perotti

Palhas maduras voavam nos braços do vento. Pareciam elegantes libélulas ao cair da noite, quando as crianças buscam a chama do fogo para enumerar as diabruras. As palhas sopravam avisos. A aldeia corria perigos. Os perigos corriam pela aldeia, mudando de nome e cor à vontade da boca de cada um. Mesmo longe do mar, a aldeia oscilava como uma canoa perdida no grande oceano. Os sussurros dos mais velhos davam a urgência de uma decisão.

— É só mais uma quizila!

— Não…é guerra?

— Que!? A guerra dá trabalho. É só mais uma quizila…

Quem não complementava dizia preocupações no ouvido do ori. Cabeças são o centro de tudo. Cai uma. Caem outras.

As capulanas coloridas tremulavam sobre os arbustos. Algumas para secar. Outras para afastar as preocupações. Outras para chamar a atenção de Olorum. Ao fundo da aldeia, um espaço era especial. Lá, a grande avó amassava todos os tipos de barro. Silenciosa, paciente e reservada, amassava e dava forma ao que bem imaginasse. Ela amava as crianças. Gostava de vê-las dançar e não queria saber, de outra vez, em que os seus filhos e netos fossem escravizados. Olhava de um grupo para outro com a preocupação das avós.

O rio no entorno da aldeia tremia águas profundas. Borbulhava dizeres entre as quedas d’água do grande percurso. Alguém avisou que os búzios desciam ao tabuleiro. Buscava-se uma orientação ancestral para o impasse posto. Os mais velhos estavam tensos. As crianças conheciam o medo por histórias não apagadas. Sentiam na pele jovem o peso da responsabilidade. A aldeia estava ameaçada. Árvores tombavam deixando feridas de sangue escorrendo pela terra. A terra estava encharcada pela ganância. Extrações e queimadas se alastravam para muito além do rio. E foi do rio que ela chegou. Linda em sua capulana dourada. Estava atrasada para o recolhimento das crianças. Mas o sorriso iluminado apagava a reprovação de quem se atrevesse a lhe chamar a atenção. Rodopiava enquanto movia as pernas pequenas. Em um dos braços, muitas flores e folhas. No outro, uma cabaça recém-tirada do rio. Demorou-se um pouco aos pés da avó, depositando-lhe as flores e as folhas. Pediu a benção aos mais velhos e rumou para o fogo que a esperava.

— Vejam. Vejam o que encontrei.

As crianças, em natural curiosidade, desceram o nariz ao chão.

— Ah! É uma cabaça antiga.

— Não é apenas antiga. Ela é mágica.

A palavra por si mesma faz magias. Mas ali, a menina conhecia as dobras de cada manga. Talvez por isso a sua capulana era sempre a mais vistosa, mais dourada, mais cheia de pequenas dobras que lhe serviam para guardar o que de precioso encontrasse pelo caminho.

— Onde você encontrou essa velharia?

— Ela me encontrou no fundo do rio.

— Você foi nadar outra vez? E logo hoje?

A menina dourada não respondeu. O seu sorriso era um relâmpago de encantamentos.

— A cabaça é mágica. Conta histórias do passado e do futuro.

— E do presente?

— Ah! Esse ainda está acontecendo, depende muito do vento.

Como a lhe ouvir, o vento carregou outras palhas para o centro do grupo. Enquanto ela contava o contado, pediram-lhe que abrisse a cabaça novamente. Um pouco sem vontade de repetir o movimento mágico, a menina argumentou:

— Não podemos gastar todas as histórias.

— As histórias não se gastam.

— Vai que… tá bom! Tá bom!

E foi quando toda a aldeia entendeu: a guerra chegara disfarçada em devaneios.

Nos repentes de algumas falas, era coisa do momento. No improviso das verdades, fogo passageiro. Ninguém levara a sério o incômodo da situação. E estivera sempre ali, onde a intolerância pisoteava outras nações, quebrava o direito dos homens, disfarçava a morte em acidente, escrevia 500 nomes em paredes de antigos porões. Era uma guerra disfarçada. Diziam os búzios, contava a cabaça, avisavam os ventos, marcavam as palhas, tremiam as águas, esvoaçavam as capulanas sobre o ori de cada um.

A menina que não se abatia por qualquer coisa, firmou as pequenas pernas sobre o formato de barro que a avó acabara de modelar. Diante do rio e do vento, diante das flores e das palhas, do colorido das matas, dos olhos de Oxalá, usou a palavra de poder. Chamou por Ogum.

Ogunhê!

E o ferro desceu à aldeia plantando proteção até hoje.


Imagem de destaque: Almanaque Lusofonista

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