Paulo Freire e a História

Cleiton Donizete Corrêa Tereza

Durante o período em que cursei a graduação em História, na primeira metade nos anos 2000, tive pouco acesso e estímulo à leitura da obra de Paulo Freire. Foram tempos marcados por mudanças significativas, como o crescimento do acirramento entre Ocidente e Oriente pós ataques terroristas aos Estados Unidos e o revide também terrorista do Império, em termos geopolíticos internacionais, e com a expectativa da eleição de Luís Inácio Lula da Silva e o Partido dos Trabalhadores em terras nacionais.

Lembro que as contribuições freirianas apareciam em disciplinas como Didática e Estrutura de Ensino, mas sem maiores aprofundamentos, até porque, em geral, nessas disciplinas tínhamos aulas em salas enormes e lotadas com estudantes dos cursos de História, Geografia e Letras. O que mais me faz lembrar do nome de Paulo Freire no curso de História é a brincadeira discutível de um professor dizendo que utilizaria comigo o método Paulo Freire. Pelo fato de ter trabalhado como servente de pedreiro durante a metade do tempo em que realizei o curso, que era noturno, o professor dizia que começaria a me ensinar pela palavra “ti-jo-lo”. Era uma referência ao método de alfabetização de adultos utilizado pelo educador pernambucano, que partia de palavras e frases presentes no cotidiano dos educandos, com os temas geradores. Eu respondia à gozação dizendo algum impropério e depois dividíamos um cigarro barato na porta da sala de aula.

Hoje, tenho o entendimento de que esta foi uma lacuna em minha formação. Estudamos outros grandes pensadores brasileiros durante o curso. Darcy Ribeiro e Milton Santos, por exemplo, que foram contemporâneos de Freire, eram sempre destacados, Paulo não. Ao menos não tenho lembranças. 

Saí da faculdade já aprovado em um concurso público e fui lecionar. Vida de trabalhador! Eu provavelmente teria lidado muito melhor com diversas situações nas escolas, se tivesse sido estimulado ou buscado por conta própria me apropriar das contribuições freireanas no início da carreira. Para além disso, eu teria compreendido melhor a história. Quanto mais avanço nas leituras das obras freireanas, mais me surpreendo com o seu profundo conhecimento da história, sempre humana, demasiada humana. E lamento que inúmeros professores de História continuem sem conhecer a obra de Freire, seja por lacunas em suas formações iniciais, seja pela impossibilidade de uma formação continuada consistente, seja pelo sectarismo que os limita e os mantém na ignorância. Lembro de um professor, em um encontro para professores de História na nossa rede municipal, que raivoso vociferava, como uma espécie de roqueiro metaleiro reacionário em dia de show: “a culpa é desses pedabobos!”

Paulo Freire, mal sabem essas pessoas, entendia muito bem a história. Muito mais do que podem supor esses tantos que nunca leram sua obra e, mesmo assim, o atacam. Vou destacar duas compreensões que demonstram isso, entre muitas que poderiam ser apontadas. Freire compreendia profundamente que história é movimento. Sabia também que esse movimento é o tempo todo permeado por contradições. E não se cansava de demonstrar que nós estamos em constante elaboração nesse processo, enquanto partícipes, mesmo que não se queira reconhecer. Isso pode parecer elementar, porém basta observar aulas, discursos e posicionamentos em redes sociais para constatar que sobram análises escatológicas, pretensas neutralidades, escritos anacrônicos, narrativas fatalistas, reproduções dogmáticas, individualismos exacerbados, sofisticadas retóricas enrijecidas. Enfim, variadas formas de negação da história.

Em Pedagogia do oprimido, de maneira esclarecedora, escreveu: “Os homens, pelo contrário (contrário em relação aos animais que são a-históricos, que não produzem cultura, que não animalizam o mundo, que não conseguem dar sentido ao mundo, que vivem em um presente contínuo esmagador), ao terem consciência de sua atividade humana em que estão, ao atuarem em função das finalidades que propõem e se propõem, ao terem o ponto de decisão de sua busca em si e em suas relações com mundo, e com os outros, ao impregnarem o mundo de sua presença criadora através da transformação que realizam nele, na medida em que dele podem separar-se e, separando-se, podem com ele ficar, os homens, ao contrário do animal, não somente vivem, mas existem, e sua existência é histórica. (…) Os homens, pelo contrário (por não serem animais/natureza), porque são consciência de si e, assim, consciência do mundo, porque são um ‘corpo consciente’, vivem uma relação dialética entre os condicionamentos e sua liberdade.” (FREIRE, 2016, p. 150-1)

E em Política e educação, Freire afirmou: “O educador progressista não poder aceitar nenhuma explicação determinista. O amanhã para o educador progressista não é algo inexorável. Tem de ser feito pela ação consciente das mulheres e dos homens enquanto indivíduos e enquanto classes sociais. A libertação não virá porque a ciência preestabeleceu que ela virá. A libertação se dá na História e se realiza como processo em que a consciência das mulheres e dos homens sine qua (sem a qual não pode ser).” (FREIRE, 2017, p. 108-9)

Gostou? Pois é, Paulo Freire colabora profundamente para a compreensão da história de forma atrelada ao nosso compromisso de humanização, o que implica educação e justiça. Para além de ouvir dizer de Paulo Freire, vá direto aos textos do autor, como um bom historiador vai direto às fontes e as analisa cuidadosamente. Como um sujeito, que é capaz, que elabora, reelabora, entende e faz história! 

Será uma ótima forma de comemorar o centenário desse grande pensador que completaria cem anos neste mês.

 

Para saber mais:
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2016.

FREIRE, Paulo. Política e educação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2017.

PEZIM, Adriana Maria Brandão et al (orgs.) Cem anos com Paulo Freire: diálogos. Belo Horizonte: Editora PUC Minas; Nesp, 2020.


Imagem de destaque: Grafite de Alex Ferreira na parede da quadra da E. E. David Campista, Poços de Caldas-MG. 

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