Joaquim, amigo estimado,
Como é gratificante receber carta tua. Deveras, estava sentindo falta de nossas conversas. Daqui, do arraial do Tijuco – terra de Chica da Silva (que se convencionou chamar de Diamantina), a vida segue lenta: às vezes com um ritmo próprio, em outras ocasiões, no mesmo passo que o resto do Brasil: caótico, desgovernado e à deriva.
Adorei as reflexões que você me apresentou. Comungo, em especial, com duas delas: i) a apatia que nos aflige, assombra e devasta e; ii) a boçalidade que, parece-me, estar em alta junto aos “notáveis” que compõem o panteão ministerial de Jair Bolsonaro – que segundo ele afirmou em campanha, seria formado por técnicos, especialistas e experts (só não sabíamos que se tratava de peritos em falar asneira). Assusta-me, meu velho amigo, o modo como a linguagem tem sido tratada nesses tempos calamitosos (e Bakhtin que me perdoe) parece-me que, enquanto seres que se constituem na e pela narrativa, nossa capacidade de falar está cada dia mais afônica: de um lado, (como você bem pontuou) ninguém diz nada sobre nada; do outro, falam-se quaisquer turpilóquios sem o menor pudor.
Que o capitão de nossa nau desgovernada é um bardo trovador de insanidades, já sabíamos antes mesmo da iminência de sua eleição (tanto que como muitos brasileiros que realmente se importam com nosso país, nos colocamos em contraposição a ele no pleito). Acho que se Tim Maia estivesse vivo, veria que suas previsões nem de longe definiriam o Brasil de 2019. Dizia ele que “Este país não pode dar certo. Aqui prostituta se apaixona, cafetão tem ciúme, traficante se vicia e pobre é de direita”. Quão inocente foste, Tim! Deve estar revirando no túmulo de vergonha! Este país não pode dar certo mesmo, pois além de pobres de direita, traficantes viciados e cafetões enciumados temos, hoje: ator pornô que vira deputado e defensor da família, da moral e dos bons costumes, juiz que prega imparcialidade após condenar, prender e tornar inelegível o maior presidente da história deste país com base na presunção de culpa e sem prova alguma e logo em seguida vira ministro da justiça e tantas outras jabuticabas que parecem só ocorrer no Brasil. Agora, a boçalidade impera entre os notáveis ministeriais e dos adeptos deste governo, não é mesmo?
Você soube da fala do Senador da República Major Olímpio? Dizia ele sobre o massacre da escola em Suzano na quinta reunião da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado: “Se os professores estivessem armados, e se os serventes estivessem armados, essa tragédia de Suzano teria sido evitada”. É um disparate atrás do outro como uma metralhadora de palavras sem limites. Como bem pontuou Vladimir Satafle em sua coluna na Folha de São Paulo “se o estado não sabe como garantir a segurança, que não peça aos professores, essa classe tão demonizada exatamente por pessoas do porte do senhor Olímpio, que façam o papel de protagonista do hospício”.
Mas o que dizer de um país em que a ministra das mulheres sugere aos pais de meninas que as eduque fora do país para evitar violência (importante destacar que ela é a mesma ministra que disse a célebre frase: “a partir de agora: menino veste azul e menina veste rosa”)? E do ministro do meio ambiente que afirmou publicamente que não faz diferença alguma saber quem foi Chico Mendes? E ainda: as pérolas do ministro da educação que envia e-mail para as escolas de todo o Brasil pedindo que gestores gravem as crianças perfiladas cantando o Hino Nacional e proferindo slogan de campanha do presidente. Na república do Golden Shower, parece que a disputa na mídia é para ver que fala mais bobagem. Projeto de nação que é bom ainda não vimos, tampouco, veremos.
A segunda questão que tua carta me provoca diz respeito à apatia pela qual passa o povo brasileiro: reforma trabalhista retira direitos dos trabalhadores e beneficia patrões e ninguém diz nada; reforma da previdência retira a possibilidade de as pessoas se aposentarem com o mínimo de dignidade e ninguém diz nada. Instituições de Ensino Superior e Cursos de Graduação são fechados e ninguém fala nada. O Ministério da Educação sitiado e disputado na “porrinha” por evangélicos, instituições de ensino privadas e militares e, ainda assim, nada é dito. A educação é diuturnamente golpeada pelos desmontes de políticas públicas e ninguém diz nada. Este cenário me faz lembrar um poema de Bertold Brecht (1898-1956):
Primeiro levaram os negros, Mas não me importei com isso.
Eu não era negro.
Em seguida levaram alguns operários, mas não me importei com isso.
Eu também não era operário.
Depois prenderam os miseráveis, Mas não me importei com isso.
Porque eu não sou miserável.
Depois agarraram uns desempregados, Mas como tenho meu emprego.
Também não me importei.
Agora estão me levando, Mas já é tarde.
Como eu não me importei com ninguém,
Ninguém se importa comigo.
Com isso, fiquei me indagando: será que ninguém fala mais nada por que não se importa com nada? Que apatia é essa que nos assola? Não dissemos nada! Não fazemos nada! O que podemos fazer para que as pessoas realmente preocupadas com os ocorridos em nosso país se manifestem? Como fazer reverberar nossos anseios, nossas insatisfações e nosso descontentamento com tanta idiotice, com tanta estapafúrdia, com tanta boçalidade?
Depois de muito refletir sobre o conteúdo de tua última carta – e um tanto preocupado com o tom macambúzio com que você me narrava os fatos, amigo Joaquim – tive uma ideia. Já que estamos retomando a escrita das cartas que como você insiste em dizer: são coisinhas gostosas de escrever e receber, mas que se encontram esquecidas pelo jeito novo de ser e estar no mundo, por que não criamos uma seção no Jornal Pensar a Educação em Pauta que seja em formato de cartas? Pensei até o nome para ela: “Cartas para quem ousa ensinar”.
Já dizia sabiamente João Cabral de Melo Neto que “Um galo sozinho não tece a manhã¹”. Para anunciar o alvorecer, esse galo precisará sempre de outros galos para fazer chegar a outros sítios, a tessitura do novo dia. Assim, a ideia é reunir cartas que sejam elaboradas por pessoas que gostam e estão preocupadas com os rumos da educação em nosso país. Essas cartas devem ser dedicadas a outras pessoas que comunguem (ou não) das inquietações anunciadas nesses tempos em que a canção dos “novos” galos já não encantam e nem sabem exatamente o que anunciam. Ou seja, o propósito com a escritura de cartas é reunir um conjunto de correspondências que nos ajudem a tecer o amanhã de nossa educação – e isso pelas mãos daqueles/as que atuam no “chão da escola” e não perdem a esperança de transformação do mundo. Os remetentes e os destinatários dessas cartas devem ser aqueles/as que, conforme nos ensinou Paulo Freire, ainda ousam ensinar.
A proposta inspira-se em diferentes narrativas literárias, como o livro Correspondência de Bartolomeu Campos de Queiroz, o poema homônimo de Charles Baudelaire e o poema Tecendo o amanhã de João Cabral de Melo Neto. A ideia é construir uma narrativa cíclica, composta por múltiplas cartas, distintas palavras e diferentes pessoas que proseiem sobre os mais variados assuntos que, ao longe, vão fundir-se, formando uma só voz, de uma rara unidade, como afirma Baudelaire.
De modo sintético, a proposta é a seguinte: alguém receberá uma carta – via Jornal Pensar a Educação – sobre um (ou mais) assunto(s) de várias ordens (ética, estética, política, dentre outros assuntos articulados com os rumos da educação em nosso país). Esse destinatário deverá, em número subsequente do mesmo jornal, comentar essa carta e endereçar uma nova missiva a uma terceira pessoa e, assim, sucessivamente. Com as cartas, podemos presentear as pessoas de duas formas: dedicando-lhe palavras que, segundo Bartolomeu Campos de Queiroz, nos fazem saber mais longe – e que por isso, devem ser guardadas no coração ou explicando-lhe quais são as palavras que devemos deixar adormecer em dicionários, quando se trata desses tempos obscuros/absurdos pelos quais passa nossa educação (e nosso país).
Assim, quem sabe, juntos, possamos passar nossas inquietações adiante (não como uma bomba nas mãos das pessoas amigas e amadas), mas como forma de anunciar o despertar de um novo tempo. Ao término do projeto, creio que teremos um “panorama” dos rumos da educação e de possíveis estratégias de enfrentamento e resistência às intempéries por que passa a escola pública nos dias atuais. Se de tudo, isso não representar um modo ousado de discutir as questões que nos assolam, esse canto de galo isolado poderá, no mínimo, transformar-se em coro na brava tentativa de tirar a sonolência dos que ainda dormem e sonham com um futuro melhor para a educação pública, gratuita e de qualidade.
Se você topar, não precisa me enviar nova missiva. Responda-me endereçando a epístola à outra pessoa. Assim, saberei que você concordou com a proposta.
Com o carinho e a estima de sempre, despeço-me.
Sandro Santos
¹MELO NETO, João Cabral de. Tecendo a manhã. In: _____. A educação pela pedra. São Paulo: Nova Fronteira, 1965.
Imagem de destaque: Dương Trần Quốc/Unsplash https://zp-pdl.com/apply-for-payday-loan-online.php https://zp-pdl.com/how-to-get-fast-payday-loan-online.php http://www.otc-certified-store.com/anticonvulsants-medicine-europe.html