Os usos políticos do 7 de setembro

Raquel Melilo

Renata Andrade

Muitos historiadores, e outros pensadores das Ciências Humanas, se incomodam profundamente com as tentativas ufanistas de reconstrução do passado brasileiro. A história da nação, frequentemente, é usada para legitimar projetos políticos do presente, bem como para forjar novas identidades nacionais. Com esse objetivo é necessário destacar determinadas memórias, assim como esquecer-se de outras. A própria construção do 7 de Setembro é muito ilustrativa.

Uma boa pergunta para iniciarmos esta discussão é: como, na atualidade, atores políticos têm reconstruído uma leitura do passado? Um caminho para se pensar sobre isso pode ser a publicação de uma peça publicitária do governo federal sobre os heróis brasileiros. Apenas dois dias antes do 7 de setembro de 2020, o Secretário Especial de Cultura, o ator Mário Frias, publicou um vídeo que deixa explícita uma visão antiquada, caquética, rasa e constrangedora do passado nacional. Vamos a uma análise mais detalhada.

O vídeo, Um Povo Heroico, foi lançado no contexto da Semana da Pátria, dedicada às celebrações do 7 de Setembro. O secretário começa sua celebração em um museu, escuro, sombrio, com cores tristes; enfim, um cenário mórbido. Neste cenário, há quadros e peças que parecem simbólicos (embora isso não fique muito claro). Tudo isso misturado com trechos do hino nacional republicano, o rei Alberto da Bélgica, a Constituição de 1891. Uma história mumificada, anacrônica e equivocada. Destaca-se Pedro II. Pedro I apenas aparece lateralmente, sendo ele, por meio da história oficial, o herói da independência. Princesa Isabel, também é apresentada de forma ilustrativa. Mário Frias afirma que a nossa história precisa ser contada. E será ele a fazer isso? Talvez sim, tendo em vista o veto do poder executivo à profissão de historiador. Mas a História, como disciplina acadêmica, não tem narrativas. Tem método e teoria.

Sem método e teoria, conta-se versões amadoras de fatos desconhecidos, por meio de registros inventados e heróis construídos. Na versão da peça publicitária, há uma série de equívocos. Para demonstrarmos o principal destes equívocos, é preciso esclarecer que nos anos iniciais do Império existia uma disputa por datas comemorativas. Havia pelo menos três datas em disputa: 7 de setembro, independência do Brasil; 12 de outubro, aniversário de Pedro I ou 1º de dezembro, dia da coroação do Imperador. Todas estas datas davam destaque ao rei, soberano, e não ao Brasil. Pedro I foi educado para ser um rei absolutista e, portanto, a nossa monarquia era narcisista. O foco não era o Brasil, suas características, seus problemas, suas dificuldades, mas sim, o imperador. O 7 de setembro evocado pelo vídeo do governo é uma invenção, uma data criada com intencionalidades políticas muito claras. Até aí, tudo bem. O problema é que usamos esta data para comemorar a existência de um projeto de país que nunca existiu.

A peça publicitária faz um elogio à História como um monumento monolítico. Quase um viés teleológico, por meio do qual apresenta-se a formação da grandiosa nação como traçada desde tempos imemoriais. Tem forte apelo emocional e afetivo, regra básica para quem quer vender um passado inexistente. Romantizado, sonhado, mas não vivido. Segundo a Secom (Secretaria Especial de Comunicação Social da Presidência da República) o vídeo conta “uma História tão bela e grandiosa quanto desprezada e vilipendiada por anos de destruição da identidade nacional”. Esta beleza e grandiosidade pode ser elencada sob diversas perspectivas. (riquezas naturais, extensão territorial…). Mas não há uma beleza nas mazelas cotidianas do povo.

O secretário informa que fala por nós, conhece a nossa gente, nosso povo. Será? Do que ele fala especificadamente? No vídeo não aparece o povo. A única mulher do vídeo é princesa Isabel. Onde estão os indígenas? Os africanos? Os quilombolas? As mulheres pretas e indígenas? Onde estão todos os outros personagens fundamentais na construção de nossa identidade enquanto nação? Diga-se de passagem, ainda em edificação. Temos na propaganda uma distância significativa do povo heroico.

Os heróis brasileiros destacados no vídeo, celebram nossas feridas. O heroísmo do brasileiro é definido pelo papel que ocupa na sociedade, seu super poder é sobreviver num contexto de privações. O herói brasileiro, para o atual governo, tem papel central. Seu mérito é confiar no governante e acreditar no futuro. Sua falha é entender seu passado.


Imagem de destaque: Mario Frias na campanha “Um Povo Heroico” da SECOM. Reprodução/YouTube http://www.otc-certified-store.com/eye-care-medicine-europe.html https://zp-pdl.com/online-payday-loans-in-america.php https://zp-pdl.com/emergency-payday-loans.php https://zp-pdl.com/get-quick-online-payday-loan-now.php

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