Por Luciano Mendes de Faria Filho
Para o Luiz Carlos, a Maria Carmen, a Ana Claudia, a Maria Angélica e, naturalmente, a Andrea.
Esse texto foi inspirado por um comentário da minha amiga de longa data, Andrea Rena, postado hoje(31/08), em minha página do Facebook. Ela dizia do nosso reencontro na luta contra o golpe e me remeteu aos anos de 1980, época em que nos conhecemos.
Naquele momento eu frequentava a universidade, como aluno de Pedagogia, e militava na Pastoral de Juventude do Meio Popular na maior região industrial e operária de Minas Gerais, constituída pelas cidades de Contagem e Betim, na Região Metropolitana de Belo Horizonte.
Daquela época, dentre os inúmeros livros de que me lembro, dois são muito marcantes. Impactou-me sobremaneira a leitura do Capitão Swing, de E. Hobsbawm e G. Rudé, que reinterpretava o movimento ludista inglês e nos mostrava o sentidos da ação coletiva dos trabalhadores frente a expansão capitalista e na organização das revoltas rurais na Inglaterra do início do século XIX No livro, a ação coletiva ganhava sentido e desfazia-se a ideia de uma ação irracional dos trabalhadores contra a inexorabilidade do capitalismo.
Ao mesmo tempo, chegava em nossas mãos o texto, ainda datilografado, da Maria Célia Paoli e Eder Sader, “Sobre classes populares no pensamento sociológico brasileiro: notas de leitura sobre acontecimentos recente” publicado posteriormente como capítulo do livro a Aventura Antropológica, organizado por Ruth Cardoso. Nele, de forma refinada e potente, a dupla mostrava o quanto os operários e as camadas operárias de um modo geral, suas organizações e seus projetos, haviam sido enquadrados de forma extremamente negativa pelas ciências humanas e sociais brasileiras. Era, ao mesmo tempo, um alerta do que havia sido produzido e um anúncio do quanto poderia ser diferente.
Lidos naquela época, estes textos, ao lado de tantos outros, reforçavam em mim a centralidade da ação coletiva e, ao mesmo tempo, tocava profundamente a minha experiência cotidiana. À luz dos textos e de minha própria experiência lia outros textos, outros autores, a produção da área da educação e de outras, e reiterava que a população pobre não era aquilo que se descrevia. E, ao mesmo tempo, remetia-me aos coletivos que me eram familiares.
Mas os meus coletivos, naquele momento, eram extremamente limitados. Para se ter uma ideia, um episódio: quando o frei Leonardo Boff foi condenado ao “silêncio obsequioso” pela Santa Sé, saímos todos em sua defesa. As pastorais populares (PJMP, Pastoral Operária, Pastoral da Terra, dentre outras) fizeram muitos e variados movimentos defendendo o direito de expressão daquele que era um dos mais importantes representantes da Teologia da Libertação. Qual no foi, no entanto, a minha surpresa, ao participar de uma reunião na igreja São José, no centro de Belo Horizonte, ao saber que havia outros grupos, em Belo Horizonte, que participavam da mesma luta. Foi com surpresa que me deparei, lá, com pessoas que eu jamais havia visto na ação pastoral ou no movimento social e que eram lideranças daquele movimento amplo que se organizava.
O “toque” da Andrea Rena me fez lembrar disso porque tenho pensado muito, nos últimos tempos, nos coletivos que se movimentaram em torno do golpe que se consumou hoje, no Brasil, com a deposição da Presidenta Dilma Roussef. Uma das grandes diferenças de hoje em relação àquela luta em que me vi envolvido lá nos anos de 1980, é que, atualmente, os coletivos são muito mais visíveis e identificáveis. Isso porque, também, as vozes da/na política se multiplicaram, pluralizando os lugares de enunciação e os pontos de vista. E isso é uma face importante da ação política atual.
Desde, pelo menos, junho de 2013, há um conjunto muito expressivo de coletivo que se manifestam, com seus corpos e cores, no espaço público brasileiro. Tais coletivos, mais efêmeros ou mais duradouros, mais antigos ou recém-criados, com lideranças mais explícitas ou mais escondidas, inundaram o espaço público com suas reivindicações, interesses e repertórios de ação. Impulsionado pela mídia reacionária, pelos grupos econômicos e pelos partidos políticos ávidos pelo sangue do PT, de Lula e de Dilma ou, simplesmente dos vermelhos e dos comunistas, os coletivos de direita ganharam uma cada vez maior visibilidade, ao mesmo tempo que provavam um desconcerto nos analistas e nos grupos que vinham defendendo uma pauta de reconhecimento e fortalecimento das diversidades e próximos das políticas públicas estabelecidas nos governos Dilma e Lula.
Um dos resultados de tudo isso sabemos hoje, 31/08, qual foi: a deposição da Presidenta pelo voto de 61 dos 81 Senadores da República, muito do quais eram seus aliados e/ou auxiliares muito próximos até recentemente. Mas, essa não é toda a narrativa do Golpe. Os vencedores de hoje, aqueles que mobilizaram os sentimentos de ressentimento e ódio em praça pública para dizer que “vermelho é mal” e defender o retorno dos militares para, como grande pai, por “ordem na casa”, terão que se haver com as contradições do golpe. De um lado, terão que amargar a derrota de suas própria pautas, por irrealizáveis que são ou porque serão soterradas pelas medidas daqueles que efetivamente mandam no governo golpista, e , por outro, porque o movimento golpista despertou sentimentos e sensibilidades que mobilizaram antigos e novos coletivos em defesa da democracia, do Estado de Direito e das política públicas.
Os rumos e resultados da luta democrática nos próximos meses e, talvez, anos, dependerão fortemente de nossa capacidade de manter ativos e mobilizados tais coletivos e, ao mesmo tempo, de nossa capacidade de reinventar nossos repertórios de mobilização e luta. A internet é, sem dúvida, um mundo no qual podemos nos encontrar, re-conhecer e mobilizar, mas jamais poderá substituir o encontro dos corpos, a conversa face a face, a troca de olhares e o abraço amigo e companheiro. Nesses gestos simples, na complexidade do mundo virtual e físico que se nos apresenta hoje, que podemos, mais uma vez, buscar forças para a reconstrução democrática do país e para evitar o destroçamento de vidas pelas políticas do governo golpista em curso.
Para que tal se realiza, certamente nos próximos meses e anos teremos que exercitar, como outrora, muita solidariedade, muito reconhecimento dos outros e de suas formas de ação, muita camaradagem e uma boa dose de utopia. Sem isso, correremos o risco de uma luta fraticida no próprio campo democrático. Certamente a aprendizagem coletiva e com a tradição pode, mais uma vez, nos ajudar a reinventar a política e fazer com que o golpe e os golpistas de hoje sejam continuamente lembrados como uma fase e uma face das mais obscuras de nossa história. Façamos, pois, com que esse tempo chegue o mais brevemente possível.