Onde Midas escondeu ouros – e deixou a sua carroça dos arrependimentos

Ivane Perotti

O rei da Frígia versa muitas histórias. Com as suas manoplas mágicas, escapa da mitologia grega na carroça dos arrependimentos. Campeia mundos e fundos. Midas tem predileção pelos povos divididos no fio de grandes fortunas. Vê uma oportunidade para remir-se e remar. E rema. Rema pelos rios Pactolos da vida disfarçado em Sileno, pai adotivo de Baco. Velho e bêbado, transita na atualidade sem despertar atenção. E sem receber cuidados. Típico das normalidades.

Midas aportou mais uma vez no Brasil em 15 de novembro deste ano. Curioso pelas zebras nas profecias dos números, considerou a estatística uma ciência discutível. Passou pelas zonas de votação e foi enxotado de todas. Menos pelo álcool – pois a lei seca permaneceu líquida – e mais pelos farrapos. Ágil para o disfarce, conseguiu tocar algumas urnas e coroou gentes promissoras. O rei de Frígia redime-se pesando ouros em formatos subjetivos. De ouro, ouro, ele não quer ouvir falar – ou tocar. Prefere encantar possibilidades de riquezas impalpáveis e as coloca sob proteção. Não por capricho, mas por estratégia de investimento. Ele espalha ativos em condições nada auspiciosas. A volatilidade das riquezas em distribuição cega a muitos. Mas não são maioria. Midas visitou as urnas e as escolas públicas que, mesmo fechadas por segurança sanitária desde o início da pandemia, movimentam capital incalculável. O soberano caprichou nos depósitos. As riquezas subjetivas transbordam nas escolas públicas, vazam para a sociedade e contaminam as margens de suas aplicações. Diferente do Pactolo original, fazem a relva crescer, fortalecer-se, abrigar outras sementes. É uma verdadeira bolsa de valores.

Há um investimento muito caro a Midas. Quando lá atrás, no surgimento do mito, o rei passa a morar no campo, bem longe das cidades, consumido pelo arrependimento, encontrou nos manuscritos uma forma de sobreviver ao castigo. Hoje os reconhece nos livros em suas criativas modalidades. O castigado rei não se esqueceu do salvamento. Nem do peso das narrativas na balança da vida. Criou um jingle que entoa enquanto visita páginas e páginas de obras inteiras. E reza a Baco que, naquele momento, cada uma delas se torne ouro puro. O mais puro dos ouros subjetivos: valores humanos. Aos escritos literários ele redobra as riquezas. Deixa baús intermináveis de contação, acontecimentos, aventuras, experiências, exemplos, emoções. À literatura Midas tocou o próprio toque. Transformou em aurum letras e palavras, textos inteiros, capas e ilustrações. Tudo brilha nos livros. E brilha sem tilintar. Uma proteção à riqueza tão querida para o rei.

Nessa última visita ao Brasil – desde a colonização ele observa o nosso país e expecta por mudanças –, ficou-lhe óbvio que a descolonização ainda não saiu do discurso motivado. E sublinhou-nos carentes por inanição. Inanição. Simplesmente. Contudo, o maior susto que Midas sofreu se deu com a taxação dos livros. Precisou da pinga braba para tentar afogar a mágoa. Não conseguiu. De ressaca e cheirando à marvada, entrou no Planalto. Quero dizer, tentou. Já na rampa de acesso sentiu o peso de um cassetete. Aquilo, de novo? Nem lhe permitiram apresentações. Estivesse vestido dos brilhos do ouro, certamente seria carregado como rei. Pouco mudara o país de um povo desapercebido. Levantou-se e empertigou o porte. Entraria nos aposentos da realeza descoroada para registrar repúdio. Uma vergonha! Um descalabro! Um ataque ao tesouro que cabia à população. Mal se pôs em pé, foi ridicularizado pela in/segurança dos asseguradores. O mais cálido dos impropérios não se permite reproduzir aqui. Nem a cena de violência que se desenrolou na sequência. O rei Midas havia elaborado convincentemente a personagem: velho, bêbado, negro. O último quesito cobrava-lhe a decisão. A pontapés e cacetetes foi empurrado rampa abaixo. Os apoiadores de plantão urravam viva! Fora! Velho demente! Esquerdista! Cachaceiro! Cai fora! vermelho! Ele caiu. Caiu estatelado, sangrando as juntas e os sentimentos. Perplexo e assustado, Midas não retomou o fôlego. Subiu à carroça e foi soluçar em praça pública. Tempos obtusos, próximos ou ainda piores do que os tempos da colônia. Os troncos de açoite invisíveis a olho nu. Grilhões por grilhões, disfarçam-se como a riqueza subjetiva também não fica à mostra. Disfarçava-se o cativeiro. Assustado, desceu da carroça e sentou-se ao chão. Atônito, Midas repassava a cena de violência: gratuita e desnecessária. Violência nada subjetiva.

O soberano sentiu-se frustrado. Conhecia mundos e mundos. Nem sempre pacíficos, nem sempre voltados à preservação da vida. O que acontecera ali atingira-o na individualidade e indicava a situação do coletivo. Nenhuma palavra de acolhida. Apenas a força bruta. A estupidez. O ultraje aos direitos civis. Ele era povo, naquele momento. E naquele momento, onde estaria o povo?

Midas voltou às páginas dos livros de escrita literária. Em cada um deles, pormenorizadamente, deteve as manoplas. Ao deus do vinho pediu clemência: _ Plantai aqui, senhor de sabedorias, as sementes da vinha. E camufla o brilho deste tesouro aos olhos que o devoram. Permita ao povo desta terra que não se banha em tiranias. E se assim o desejarem, que o façam conhecendo as ditaduras.

Assim se fez. Os livros literários brilham ao largo dos projetos que minam o povo, logo à frente da carroça dos arrependimentos, não por acaso deixada por Midas, aqui, no Brasil.


Imagem em destaque: Will Svec / Unsplash

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