O rei  da vela – a genialidade de Oswald de Andrade – Parte II

Alexandre Azevedo

Na introdução do livro, o crítico teatral Sábato Magaldi explica assim o motivo do título: “(…) a fabricação de velas, resíduo religioso de um país feudal, em que todo morto guarda um pavio aceso entre as mãos postas, motivo do título”.

O 1º ato se passa em um escritório de usura (agiotagem) em São Paulo, o Abelardo & Abelardo. O cenário mostra bem uma variedade de objetos penhorados, que vai de um retrato da Gioconda a um divã futurista e a uma secretária Luís XV. “O Prontuário, peça de gavetas, com os seguintes rótulos: MALANDROS – IMPONTUAIS – PRONTOS – PROTESTADOS. Na outra divisão: PENHORAS – LIQUIDAÇÕES – SUICÍDIOS – TANGAS.” A história é uma paródia do circo, tendo uma porta enorme de ferro que deixa ver no seu interior as grades de uma jaula.

Abelardo I aparece sempre acompanhado de Abelardo II. Este, só pensa em suceder àquele na chefia do escritório. Cobram altos juros pelos empréstimos, reformam títulos quando isto lhes é compensador. São tiranos, brutais, impiedosos com os inadimplentes. Abelardo II aparece caricaturalmente vestido de domador de feras. Usa botas, uma pastinha, enormes bigodes retorcidos, monóculo e um revólver à cinta:

O CLIENTE – Mas eu fui pontual dois anos e meio. Paguei enquanto pude! A minha dívida era de um conto de réis. Só de juros eu lhe trouxe aqui nesta sala mais de dois contos e quinhentos. E até agora não me utilizei da lei contra a usura…

ABELARDO I (interrompendo, brutal.) – Ah! meu amigo. Utilize-se dessa coisa imoral e iníqua. Se fala de lei de usura, estamos com as negociações rotas… Saia daqui!

O CLIENTE – Ora, Seu Abelardo. O senhor me conhece. Eu sou incapaz!

ABELARDO I – Não me fale nessa monstruosidade porque eu o mando executar hoje mesmo. Tomo-lhe até a roupa ouviu? A camisa do corpo.

O CLIENTE – Eu não vou me aproveitar, Seu Abelardo. Quero lhe pagar. Mas quero também lhe propor um acordo. A minha situação é triste… Não tenho culpa de ter sido dispensado. Empreguei-me outra vez. Despediram-me por economia. Não ponho minha filhinha na escola porque não posso comprar sapatos para ela. Não hei de morrer de fome também. Às vezes não temos o que comer em casa. Minha mulher agora caiu doente. No entanto, sou um homem habilitado. Tenho procurado inutilmente emprego por toda parte. Só tenho recebido nãos enormes. Do tamanho do céu! Agora, aprendi escrituração, estou fazendo umas escritas. Uns biscates. Hei de arribar… Quero ver se adiantam para lhe pagar. 

ABELARDO I – Mas, enfim, o que é que o senhor me propõe?

O CLIENTE – Uma pequena redução no capital.

ABELARDO I – No capital! O senhor está maluco! Reduzir o capital? Nunca!

O CLIENTE – Mas eu já paguei mais do dobro do que levei daqui…

ABELARDO I – Me diga uma coisa, Seu Pitanga. Fui eu que fui procurá-lo para assinar este papagaio? Foi o meu automóvel que parou diante do seu casebre para pedir que aceitasse o meu dinheiro? Com que direito o senhor me propõe uma redução no capital que eu lhe emprestei? (P.40-1). (CONTINUA)

 

Para saber mais
Andrade. Oswald de. O rei da vela. São Paulo: Editora Globo / Secretaria de Estado da Cultura, 1991.


Imagens de destaque: Galeria de Imagens.

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