Otavio Henrique Ferreira da Silva
Essas duas perguntas poderão ser facilmente respondidas se fizermos no mínimo uma breve revisão literária pertinente à história das instituições de atendimento à infância brasileira ao longo dos anos. A educação infantil que assim se torna após 1988 ao adquirir reconhecimento na legislação nacional, possui uma história anterior a esse tempo e que continua durante a década de 1990, marcada pelo descaso de um Estado no qual as crianças pequenas nunca foram vistas e tratadas com prioridade.
As primeiras instituições de atendimento à infância no Brasil começam a surgir do final do século XIX. Ao longo dos anos, devido às diversas influências, para atender a diferentes interesses, foram vários os nomes utilizados para designar essas instituições: Gotas de Leite, Lactários, Escolas Maternais, Jardins de Infância, Febem, Asilos Infantis, Orfanatos, Creches. Quase todas elas, com exceção dos jardins de infância, eram instituições que atendiam às crianças pobres, sendo, verdadeiros depósitos de crianças que não possuíam condições mínimas para oferecer se quer um pouco de dignidade para os nossos pequenos infantes.
A relação da mulher com essas instituições é diretamente proporcional, pois representou durantes anos, um amparo de assistência para as mães que cada vez mais ingressava no mercado de trabalho. Apesar de serem instituições de assistência e muitas vezes estarem vinculadas ao campo da saúde e ao campo jurídico, elas não deixavam de ser instituições que de certa forma ofereciam uma educação para as crianças. No entanto, elas educavam para a alienação desses sujeitos das classes populares. Tomando emprestadas as palavras de Moyses Kuhlmann Jr: isso era a “Pedagogia da Opressão”.
As mulheres organizadas em movimentos de bairro, o movimento feminista e os vários movimentos sociais, pautaram e cobraram durante muito tempo que o Estado de fato assumisse o compromisso de ampliar e investir nas instituições de atendimento à infância. Essas reivindicações ganharam amplitude a partir da década de 1960, tempo em que o país sofria com governos que tratava as políticas sociais com indiferença. Diante a pressão social pela ampliação dos serviços para a infância e diante ao discurso do governo de que o Estado era pobre e não podia assumir o financiamento destes serviços, implantou-se um plano nacional de educação pré-escolar de massa, que conseguiu realizar a ampliação destes serviços de assistência e educação das crianças pequenas. No entanto, esta política implantada, jogou a responsabilidade de garantir a oferta de educação das crianças pequenas, para cima das próprias pessoas que a reivindicavam. Essa jogada política significou que o Estado se isentou de assumir a responsabilidade tal como era reivindicado pelos movimentos populares, como diriam: se é isso que o povo quer, portanto, que o povo cuide disso então.
Somente com o processo de redemocratização do país e devido a garra e a persistência de militantes das políticas para mulheres e para a infância, que se foi possível legitimar uma política para esta etapa da vida com características de assistência e educação (daí tal emblema de Cuidar e Educar) assumida como de responsabilidade legitima do Estado Nacional: a Educação Infantil. Essa conquista só foi possível em 1988, só foi possível em um regime democrático, só foi possível quando o povo teve pela primeira vez ou por raríssimas vezes na história do país, voz para dizer, voz que se fizesse chegar ao alcance dos ouvidos dos políticos nacionais. Agradecimentos também a Florestan Fernandes. Bravo!
Porém, a conquista de direitos para o povo na legislação, bom lembrar que a educação infantil foi apenas um deles (o direito a participação social também é uma importante conquista para o campo popular após 1988 entre outros), não havia representado ainda que o desejo da população fosse amplamente revertido em políticas públicas pelo governo federal. Percebe-se que, com a redemocratização, alguns candidatos municipais com propostas populares como a de oferecer a educação infantil, conseguiam chegar ao poder local. Em âmbito federal, no entanto, persistia a ocorrer uma negligência ao direito à educação das crianças pequenas, tal qual, quando em 1996 se cria uma política nacional de financiamento complementar para a educação, o FUNDEF, onde a educação infantil junto com o ensino médio foram ignorados pelo governo federal. Quer dizer, o movimento que se fizera na ditadura militar de deixar a responsabilidade da educação infantil para o âmbito local, ainda persistia.
De fato, isso somente começa a se modificar quando o Partido dos Trabalhadores-PT assume a presidência da república a partir de 2003. Um exemplo disso, é a Criação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação-FUNDEB no ano de 2007. A partir do FUNDEB, a educação infantil pela primeira vez na história recebe recursos através de uma política publica de financiamento da educação básica. Além disso, surgem também programas como o Proinfância, cursos de especialização e documentos legais com o olhar desta política a partir do direito da criança.
Percebe-se que sob o governo de um partido de esquerda, é que as crianças começam também a terem voz e serem ouvidas em suas necessidades. Antes disso, e até em alguns governos seguintes pós reabertura do regime democrático, o que se via era uma clássica reprodução da negligência que fortemente marcou a primeira etapa da educação básica: um Estado que nunca tratou a criança como um sujeito de direito, ao não assumir um papel de responsabilidade nacional pela implementação de uma política de qualidade para a primeira infância.
Ainda não se alcançou um patamar de educação de qualidade mínima da qual as nossas crianças tem direito, pois, como pauta a Campanha Nacional Pelo Direito à Educação, é muito necessário que haja um aumento de investimentos na área educacional pública, e também, que sejam realizadas mudanças no FUNDEB de forma que a educação infantil também atinja um patamar de equidade no recebimento de recursos comparado aos outros níveis de ensino.
Na atualidade, a tentativa de fragilizar a democracia com a organização de um golpe-direitista-midiático, para dizimar um partido de esquerda do poder político do país, representa um retrocesso imenso para a política de educação infantil brasileira. Isso porque, são inúmeras as tentativas de diminuir a responsabilidade do Estado na destinação de recursos para as políticas sociais. Fatores que contribuem para isso são as constantes propostas de privatização de empresas públicas, a venda a preço de banana do direito de exploração do pré-sal, cortes de recursos nas áreas sociais e regulamentação da terceirização em âmbito público e privado. Também, algo que deixa mais evidente a vontade de diminuir essa responsabilidade estatal na garantia de direitos ao povo, foi a proposta de Emenda Constitucional elaborada pelo Deputado Alfredo Kaeffer do PSDB/PR onde pauta a criação das Creches Domiciliares e das Mães Crecheiras (habilitação com ensino fundamental). Isto de fato representa uma volta ao passado que desconsiderou a educação infantil como um direito das crianças de receberem cuidado e educação com qualidade.
Romper com o regime democrático do país e expulsar um partido esquerdista do poder, representam para a educação infantil, um aumento tremendo na distância dela um dia se tornar uma política pública que realmente contribua para a emancipação das crianças pequenas, principalmente, das crianças pobres que são às que mais dependem dos serviços públicos oferecidos e gerenciados pelos órgãos estatais.
Fragilizar ou romper com a democracia, é crucificar a infância de muitos sujeitos. Mas se as crianças são o futuro da “nação”, como dizem, será que tempos melhores há de vir?