O necessário diálogo sobre discriminação racial e intolerância religiosa

José Heleno Ferreira

Segundo Darcy Ribeiro, somos descendentes de uma gente que segurava o terço com uma mão e, com a outra, chicoteava pessoas negras e indígenas. Ao comentar a formação do povo brasileiro, o antropólogo afirma:

Nenhum povo que passasse por tudo isso como sua rotina de vida através de séculos sairia dela sem ficar marcado indelevelmente. Todos nós, brasileiros, somos carne daqueles pretos e índios supliciados. Todos nós, brasileiros, somos por igual a mão perversa que os supliciou. A doçura mais terna e a crueldade mais atroz aqui se conjugaram para fazer de nós a gente sentida e sofrida que somos. E a gente insensível e brutal que também somos.

As marcas do longo período de escravização estão presentes na nossa história e, tal como nos diz outro brasileiro, o poeta Mário Quintana, trata-se de um passado que insiste em não reconhecer o seu lugar, está sempre presente. O grande número de denúncias de trabalho escravizado com o qual temos convivido nos últimos dias mostra a relevância do que nos diz o poeta gaúcho. E em se tratando da formação do povo brasileiro é necessário destacar que os séculos de opressão que se abateram – e continuam se abatendo – sobre as pessoas pobres de uma forma geral, foram ainda mais cruéis com negros, negras e indígenas. Ao mesmo tempo, a contribuição que esses mesmos grupos trazem para a sociedade brasileira é imensurável: a doçura mais terna, mesmo diante da crueldade mais atroz.

Os povos indígenas enfrentam, por um lado, há cinco séculos, o genocídio e todas as formas de discriminação e violência. Por outro, ensinam-nos a capacidade de resistência, a importância de relacionar-se com o planeta a partir de outros princípios que não a destruição e a busca pelo lucro acima de qualquer coisa. Enfim, são os guardiões da vida, anunciam um outro amanhã possível.

Quanto aos africanos e africanas que foram aqui escravizados, é necessário reconhecer que foram os responsáveis pela construção das riquezas deste país. E também, com suas lutas pela liberdade, mostram-nos a importância de não aceitar a dominação, de não se conformar com a perda da liberdade.

A opressão contra povos indígenas e negros e negras não foi apenas através da violência física, embora esta tenha sido utilizada de forma absolutamente cruel. Povos indígenas foram proibidos de falar a própria língua, obrigados a negar suas crenças e sua relação com o sagrado, sua cultura e sua forma de relacionar com a terra, as águas, as plantas. Negros e negras sofreram todos os tipos possíveis de violência física e também cultural. Basta verificarmos como as construções culturais negras neste país foram, historicamente, criminalizadas: o samba, a capoeira, o Candomblé, a Umbanda… A negação e a criminalização da cultura negra e indígena, bem como das culturas populares, são os pilares que sustentam a exclusão das minorias sociais dos espaços de convivência social, dos espaços educacionais e, principalmente, dos espaços de poder.

E como este é um passado que insiste em não reconhecer o seu lugar, continuamos convivendo com tragédias como o genocídio do Povo Yanomami. Com o extermínio da juventude negra, pobre e periférica. Com o encarceramento em massa de negros e negras… Com a intolerância religiosa em relação às tradições de matrizes africanas…

A relevância de todas estas questões justifica a definição do dia 21 de março como Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial. A data, instituída pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1966, faz referência ao massacre de Shaperville, na cidade de Johanesburgo, na África do Sul, em 1960. Negros e negras realizavam um protesto pacífico contra a lei do passe, que, durante o Apartheid, obrigava que levassem consigo o passe que as autorizava a estar num ou noutro lugar. Embora fosse um protesto pacífico, as tropas do exército reagiram violentamente, ferindo e matando centenas de pessoas.

Neste ano de 2023, o dia 21 de março foi instituído também como Dia Nacional das Tradições de Matrizes Africanas e Nações do Candomblé, conforme lei 14519/23. Os debates em torno da criação desta lei tiveram início em 2010, a partir de uma sugestão do então deputado federal e sindicalista Carlos Santana. Em 2015, o deputado federal Vicente Paulo da Silva apresentou o projeto que, em 05 de janeiro deste ano, foi aprovado.

Sabemos que as datas são apenas pontas de icebergs para que não nos percamos no oceano da História. Sabemos também que os desafios da construção de uma escola e de uma sociedade antirracista precisam ser enfrentados cotidianamente. Mas estas pontas de icebergs precisam ser consideradas pelos professores e professoras que querem contribuir com a formação de crianças e adolescentes. E enquanto convivermos com qualquer tipo de intolerância e desrespeito à diversidade, o diálogo acerca da discriminação racial e da intolerância religiosa nas salas de aula, desde a primeira infância até a pós-graduação, faz-se necessário.

Sobre o autor
Filósofo, doutor em Educação, professor de Ciências Humanas da Rede Pública Municipal de Divinópolis. Membro do Conselho do Patrimônio Cultural e presidente do Conselho Municipal de Educação de Divinópolis.


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