O menino que jantava dicionários – parte I

 Ivane Perotti

Aconteceu enquanto a noite o apanhava. Mãos frias. Escorregadias. Encouraçadas. Hálito de fundo podre. Líquido. Pegajoso como sonhos que não acordam. Testemunhas da urbanidade afogadas no bafo mortal. Era um. Eram muitos. Caricaturas da realidade coroando as calçadas sem corrimão. Figo se parecia com qualquer um. Cicatrizes da família. Linhas de sofrimento. Menos de 10 anos. Mais de 100. Passava por filho de alguém. Ali atrás. Vendendo esmolas. Comprando ventos. Alguém. Cabia em palavras baixas saídas dos olhos. Carcomidos. Vazios. Infância craquelada. Desnutrida. Desvalida. Alguém. Não assinava versos. Pai ou mãe. Mas gostava de música. Especialmente aquelas que saíam para fora das lojinhas entulhadas de promoções. Lembravam festas. Aquelas que nunca tivera. Certamente não as teria. Sentado no paralelepípedo, ouvia. Separava-as, mesmo quando serpenteavam em caixas de som vizinhas. Quatro. Cinco músicas competindo em altura e diferença. Separava-as. Bastava fechar os olhos. Cada qual entrando pelos ouvidos. Olhos. Boca. Nariz. Até pelos dedos encardidos. Se pudesse, ficaria sempre ali. Mas quando chegavam os homi, escondia-se. Já fora levado para um abrigo. Pior do que a sua casa com padrasto e oito irmãos. Menores. Maiores. Primos. Vizinhos. Uma selva de gentes cheias de pernas e mãos. Mãos que subiam e desciam sobre o corpo de alguém.  Como porrete de abate. Os braços magros falavam por si. As costas, os ombros, as pernas. Seu corpo era um mapa das surras com aviso e daquelas que pegavam sem preparo. Naquela que lhe deixara com um dos olhos feridos, desistiu de casa. Há mais de um ano vivia onde era recebido. Calçadas. Viadutos. Procurava pequenos grupos. Cumpria algumas tarefas. Tornara-se uma mascote da rua. Bom para furtos rápidos. Passava despercebido. Sabia pedir. Implorar. Figo para os outros. Sem nome. Matava lembranças. Negava-se a contar histórias. Preferia escutá-las. Especialmente à noite. Quando o breu lhe tomava de horrores. E o movimento quente cedia lugar a um quase silêncio. As ruas alargavam-se. Temia-as. Como línguas vazias, serpenteando em esquinas de azar. Aquietava-se ao anúncio noturno. Escondia o medo. Respeitava a escuridão. Com um olho e meio, via coisas. Coisas dos vivos. Cargas dos mortos. Tudo igual. Perigosos encontros. Daí que, quase deixara passar aquele acontecimento. Ouviu as batidas do vento. Algumas folhas de papel voavam de encontro à parede do viaduto. Diminutas fogueiras abriam línguas. Linguetas. Provocadas pela respiração da noite. Vento frio.  Mal-humorado. Espantou algumas páginas teimosas. Ainda coladas entre si, pareciam mulheres sem roupa. Via muitas. Desejava não ver. A mãe não concedera cuidados. Nem a ele, nem a ela. Olhava de longe o que se passava na casa desprotegida. Nunca um abraço. Ou olhar de entendimento. Jamais o retirara das garras daquele homem. Não lhe ensinara o aprendido. Fazia transportar o corpo sem colo de um lugar para outro. Dentro e fora da casa. Nada dizia. Ou tocava. A não ser o peito murcho de leite para afogar o choro do menor. Sempre havia um. Menores. Dela. De alguém. De passagem. Indo e vindo. Um ninho de ratos. Ratazanas. Roedores. Conhecia um por um. Empilhavam-se, desordenadamente. Sem regras. Sem nada. O acaso os fazia respirar. Ou não. Quando deixavam de chorar, desapareciam. Alguém os levava. Ou não levava. Jamais soube o que se passava com as crianças que não vingavam. As páginas provocaram-lhe um arrepio no centro da alma. Resposta imediata na asa do estômago. Olhou para os vizinhos de viaduto. Alguns dormiam. Outros apagavam-se. Puxou o fétido cobertor sobre o rosto. Aquele vento metia-lhe medo. Avisava de acontecidos por acontecer. Coisas ruins chegavam com ele. Carregava-as gratuitamente. Talvez gostasse de ver o medo despalavreado bater nos corpos esquecidos. Só um baque. Na mente. Nos olhos abertos. Desejou apanhar o papel que dançava loucamente. Perto. Mas não o suficiente para arriscar-se contra os agouros noturnos. As folhas ganhavam vida a cada sopro gelado. Noite fria. Esperança morta. Já desistia do espetáculo quando o mais velho do grupo desejou saber por que ele não dormia. Falta de cola? Guardara um pouco. A cola não diminuía o medo. Encorpava-o. Tentáculos de polvo entravam pelas narinas, giravam dentro dos pulmões e liberavam fantasmas. No máximo tapeava a fome. No início. Não mais. Não queria cola. Se o vento criasse ventosas, ele seria o primeiro a ser capturado. Arrepiava-se só de pensar. À quase ordem para dormir, colocou a mão para fora do cobertor. Olhos e dedo seguiram na direção das páginas bruxuleantes. O outro compreendeu. Salvou as páginas com marcas de tinta. Dedos. Espaços em branco. Manchas baratas. Sujeiras sem dono. Nome. Um pedaço de algo que lhe parecia ter importância. Levou a posse para entre os joelhos. Fechou-se. Adormeceu dominado por um torpor de fora. Tocado pelo rabo do vento e suas ventosas em círculos esbranquiçados. Leitosas. Fundas. 

Continua…


Imagem de destaque: Fito Abalo/Flick

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *