Editorial do Jornal Pensar a Educação em Pauta, Ano 6 – Nº 211/ sexta-feira, 31 de agosto de 2018
Pode-se dispensar a Escola como lugar de formação pública das pessoas? Pode a família assumir esse lugar, em âmbito privado? É o que onze juízes do Supremo Tribunal Federal decidirão nos próximos dias. Como tantas outras questões da vida, a reflexão sobre a obrigatoriedade da educação na Escola acabou também judicializada.
A Escola é uma invenção moderna. Nasceu e foi se afirmando socialmente em meio às revoluções dos séculos XVIII e XIX: a científica (afirmação da ciência), a industrial (era do capital) e a política (advento da República). As novas experiências de sociabilidade que então emergiam com o crescimento das cidades, as aglomerações urbanas, o aparecimento da ‘população’ como objeto de preocupação e cuidados; as novas modalidades de trabalho advindas da industrialização, as classes sociais em constituição – são circunstâncias tais que produziram a necessidade de uma ‘intervenção’ organizada e intencional do poder público na formação das pessoas. Em meio a essa complexificação das práticas sociais a Escola foi então pensada e produzida para civilizar, moralizar, instruir e educar pessoas – a começar pela infância.
A empreitada exigia que fosse um lugar distinto, que não se confundia com a família, nem com a rua, tampouco com a religião. Uma instituição criada para ser lugar de uma formação sistematizada sobre as pessoas, planejada a partir de um programa definido. Programa público, realizado em lugar público: a Escola como coisa pública, daí seu caráter republicano.
Por isso, o princípio de ser a escola uma instituição pública, mantida pelo Estado, para executar uma educação comum a todos, definida também pelo Estado. Nasceu então, pode-se dizer, apartada da família, afastada da rua, separada da igreja, instituições das quais deveria manter-se distante, cultivando uma autonomia que a distinguia e a reconhecia como lugar próprio, com propósitos próprios, voltada para uma educação sob o manto da razão e do conhecimento científico. A Escola espalhou-se pelo mundo e nesses 300 anos afirmou-se como instituição social indispensável às práticas civilizatórias. Tornou-se obrigatória, dever do Estado, direito de cidadania.
Histórias dessa invenção moderna – de suas práticas, de seus sujeitos, de suas vicissitudes, enfim, de sua presença na formação das pessoas – têm sido contadas, e a produção do conhecimento a seu respeito é já muito rica também em nosso país, e pelo mundo. Basta aqui citar, como exemplo integrador, a nossa Sociedade Brasileira de História da Educação como entidade que congrega pesquisadores(as), docentes e discentes do Brasil, e a rica produção disponível.
A Escola – e aqui a referência é à Escola Pública – permanece na contemporaneidade ocupando lugar de central importância na formação das pessoas, em que pesem as circunstâncias muitas vezes dramáticas de sua existência (precarização, abandono, e tantos problemas que conhecemos). Há também importantes estudos que tratam do ‘efeito escola’ na vida das pessoas. Dados do censo escolar mostram que 93% de estudantes da Educação Básica frequentam a Escola Pública. São mais de 40 milhões de estudantes no Brasil.
Este lugar da Escola vem sendo questionado. Há quem deseja dispensá-la de responsabilidade na formação pública da infância e da juventude. Argumenta-se que a família teria o direito de educar seus filhos no espaço privado da casa, sob responsabilidade dos pais. Quer-se a autonomia para educar filhos sem a intervenção da Escola – quer dizer: sem um sentido público na formação das pessoas. Alega-se, por exemplo, que a escola não garante segurança aos filhos, é lugar de violências diversas, de circulação de drogas, de tantos problemas mais. Seria melhor, portanto, isolar as crianças e os jovens desse lugar. Como se uma instituição que existe em meio às muitas condições adversas em que vive a população brasileira pudesse estar imune a elas. Como se pudesse ser um santuário protegido… dos humanos que somos. Não podendo ser, o outro ‘santuário’ desejado é a casa. Ora, a casa… (Leia-se a respeito da violência doméstica contra crianças e jovens…)
Quem se apresenta hoje sustentando essa posição política, e se mobilizou para que chegasse ao Supremo Tribunal Federal?
É o caso de especular a respeito.
Não é de estranhar que questionamentos e tentativas de ‘dispensar a Escola’, e isolar crianças e jovens desse universo, pretendendo assumir seu lugar na formação pública das pessoas, sejam (re)apresentados justamente quando programas curriculares definidos por órgãos públicos e práticas escolares realizadas pelos sujeitos da educação (docentes e discentes) vêm abrindo-se para acolher e tratar temas contemporâneos que colocam em causa valores, normas, padrões estéticos, que ousam enfim indagar culturas estabelecidas.
E então não será difícil reconhecer quem assume a defesa da chamada homeschooling.
A ‘assinatura’ abaixo desse argumento fica bem evidente. Em suma, são ‘cidadãos de bem’ que desejam uma formação amorfa, puramente técnica, insípida e inodora, isolada do mundo dos humanos… sem partido.
Aliás, não é nem mais a defesa de uma ‘escola sem partido’. É o desejo de uma formação humana sem Escola.
De nossa parte, fazemos a defesa da instituição Escola. Não de maneira ingênua, todavia. A Escola precisa, sim, ser diariamente indagada, interrogada, desafiada, pensada, questionada. Seu lugar nas práticas sociais é um permanente desafio às nossas reflexões e proposições. Não é por outro motivo que realizamos a pesquisa “A Educação nos projetos de Brasil”, financiada pelo CNPq. Que projetos de Brasil sustentaram e orientaram a Escola nos últimos 200 anos? É o que procuramos compreender para agir no presente e na produção de um futuro.
Não defendemos qualquer Escola, tampouco defendemos qualquer proposta de formação dentro da Escola.
Queremos a Escola Pública, a Escola em que todos caibam e se sintam pertencentes a uma comunidade; a Escola como lugar de sociabilidade entre crianças, jovens, adultos, para assim estar entre pessoas e então conviver com o outro, e aprender juntos a partilhar a vida; a Escola como lugar de pensar as culturas, de acessar, fruir e questionar o conhecimento científico para compreender os modos de sua produção e circulação; a Escola de viver experiências estéticas, lúdicas, de indagar a vida, as relações humanas; a Escola que é um mundo de todo mundo; a Escola que não está afastada ou isolada do mundo, ao contrário, que é um dos lugares de estar nele, de introduzir-se neste mundo que humanos criam e reinventam a todo instante. Escola para compreender e transformar esse mundo, aqui, ali, em todo canto.
Essa é a Escola que crianças, jovens e adultos merecem, que estamos construindo, que é nosso desafio instigante e estimulante pensar e realizar.
A propósito, há 18 anos o Conselho Nacional de Educação já se pronunciava a respeito da obrigatoriedade do ensino na Escola, com o Parecer CNE/CEB, n. 34/2000, depois encampado pelo Superior Tribunal de Justiça ao se pronunciar a respeito.
Trazemos também a contribuição do Professor da UFMG, Carlos Roberto Jamil Cury, em texto esclarecedor publicado em 2006 na Revista Educação e Sociedade, cuja leitura indicamos e do qual destaca-se este fragmento:
“A educação escolar responde a um dos pilares da igualdade de oportunidades. A educação infantil, o ensino fundamental gratuito e obrigatório e o ensino médio, etapas constitutivas da educação básica em nossa organização nacional da educação escolar, são determinantes na rede de relações próprias de uma sociedade complexa como a nossa e que, como se viu, objetiva a cidadania de seus membros inclusive sob a forma de uma socialização plena que inclui a qualificação para uma inserção profissional, digna da pessoa humana como assevera o art. 3º, III da Constituição.”
Lutar pela Escola como lugar público da cidadania emancipada. Afirmar sua presença como um dos “pilares da igualdade” para fazer nosso país bonito porque justo e fraterno.