O lobo e o cordeiro: narrativas que responsabilizam as vítimas pela própria tragédia

Carlos André Martins Lopes

Um lobo e um cordeiro se encontraram num rio. O lobo procurou um pretexto para matar o cordeiro e logo encontrou um expediente. Passou a acusá-lo de estar “turbando” a água que ele estava bebendo. O cordeiro logo respondeu que isso não fazia sentido, pois estava na parte baixa do rio, ao passo em que o lobo estava na parte alta. O lobo continuou lançando acusações ao cordeiro, ao que este sempre respondia, mostrando que o lobo não tinha razão. Mas a sorte do pobre cordeiro já estava selada. Ele acaba despedaçado pela fera. 

Resumi acima o enredo de uma antiga fábula latina, intitulada “O lobo e o cordeiro”. A referida fábula já traz com ela a interpretação. Ela ‘descreve os homens ricos e poderosos’, que oprimem e fazem acusações falsas a pessoas inocentes com o intuito de oprimi-las e(ou) de eliminá-las. Não há como deixar de concordar com esta interpretação, e também não podemos deixar de reconhecer a atualidade do tema trazido por essa história. Novos sentidos, contudo, podem ser construídos para essa riquíssima fábula. Ela diz muito mais do que pode revelar as poucas palavras que foram usadas para construí-la.

Sabemos que o lobo possui todos os meios para eliminar um cordeiro sem que precise de qualquer expediente para isso. O lobo da história poderia ter suprimido a vida da vítima sem ter iniciado uma querela com ela. Mas por que será que a fera não usou de imediato sua ferocidade para cumprir seu intento? Estando resoluto a matar o cordeiro, por que o lobo procurou antes fazer acusações à vítima?

Pode-se pensar que o intuito do lobo não era a simples eliminação daquele – nem tanto – indefeso animal. Era preciso construir um sentido para o ato covarde de violência. O lobo precisava, talvez, de um pretexto para continuar matando. Para isso, era necessário culpar a vítima pela própria morte. A fera queria justificar sua violência fazendo acreditar que o cordeiro o havia provocado antes; talvez objetivasse criar e alimentar a narrativa de que seu ato de violência consistiu num gesto de defesa. Era necessário, assim, projetar sua natureza assassina sobre o cordeiro para só então eliminá-lo. Era uma forma de culpar a vítima pelo seu desventuroso destino. 

Mas também podemos pensar que a fera, na verdade, estava construindo e alimentando uma narrativa que tinha como objeto mais o coletivo cordeiro do que o indivíduo dessa espécie. O ódio do lobo não era contra aquele cordeiro específico; seu furor era contra a espécie. Ele desejava, com o expediente de culpar a vítima pelo triste destino, fazer emergir uma narrativa em que a espécie fosse considerada perigosa, hostil e violenta, criando, assim, as condições para que ela fosse perseguida, caçada e eliminada. Com um discurso de que aquela espécie era perniciosa, o animal sedento de sangue poderia eliminar não apenas um, mas tantos quanto encontrasse em sua frente, alegando, com isso, que estava prestando um serviço para as demais espécies de seres vivos.

O lobo representa certos grupos humanos. Ele representa os racistas, por exemplo. Suas estratégias são as mesmas utilizadas ainda hoje contra minorias e/ou mesmo maiorias que destoam do padrão “normal” instituído pelos lobos. As estratégias do lobo da fábula são similares às adotadas, por exemplo, pela Ku Klux Klan, grupo racista estadunidense, especializado em perseguir, torturar e matar pessoas negras. Esses grupos eram provocadores, pois tinham a necessidade de culpar o negro pelo seu assassinato. Provocavam com xingamentos, com insultos, com ameaças e, tão logo houvesse o mínimo sinal de descontentamento, prendiam-nos, torturavam-nos e os matavam. As provocações tinham o propósito de suscitar uma reação ou atitude de defesa nas vítimas. Seguia-se o ato de brutalidade e a posterior fabricação de uma narrativa na qual a reação ou o gesto de defesa da vítima fosse apresentado como um ato violento. Com esse expediente, a “KKK” intencionava fazer crer que a índole assassina, cruel e monstruosa dos membros do grupo seria tão somente uma atitude de defesa, e que o gesto de defesa da vítima figurava como a manifestação de uma natureza violenta, perniciosa, hostil.

Vemos nessa prática a manifestação de uma intenção genocida, na qual o alvo do grupo assassino nunca é apenas o indivíduo; ao contrário, o alvo é sempre o grupo. Mata-se o indivíduo com características definidas, como a cor da pele, por exemplo. Faz-se acreditar que aquele indivíduo possui uma natureza propensa à agressividade, à violência, e que estas são características de todos aqueles que possuem a mesma cor de pele. Logo os indivíduos assim definidos passam a ser representados como um “perigo” para a sociedade. Cria-se, desta forma, as condições para que haja uma violência perene, contínua contra qualquer indivíduo que tenha a pele negra.

Essa mesma interpretação se aplica aos autores de crimes de homofobia, de feminicídio, de xenofobia, de intolerância religiosa e de tantas outras modalidades de violência que negam a humanidade de grupos e de indivíduos. 


Imagem de destaque: moonnl / Pixabay

 

 

 

 

 

 

 

 

1 comentário em “O lobo e o cordeiro: narrativas que responsabilizam as vítimas pela própria tragédia”

  1. O texto descreve um acontecimento onde muitas das vezes , os assim dizendo , criminosos , sempre querem ter uma razão , para culpar a vítima , pelos atos tomado , e o texto retrata isso em uma fábula, onde o lobo quer de toda maneira acusar sua vitima (o cordeiro) pelo crime que comete , como se tivesse motivo para fazer o que fez , assim fazendo um retrato do mundo real , onde as vitimas são as culpas por sofrem crimes .

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