O ensino da Ditadura nas escolas (Parte II)

 Antonio Carlos Will Ludwig

Na Argentina reina uma preocupação muito grande e uma postura bastante rigorosa quanto ao período ditatorial. Para o povo argentino este período da história é visto não só como um dever de memória, como um evento que precisa ser sempre lembrado,   mas, prioritariamente, como algo que nunca mais possa vir a acontecer. Assim sendo a abordagem desse lapso que oficialmente passou a ser denominado de Terrorismo de   Estado   aparece em muitas datas comemorativas, nos livros escolares, em conteúdos de ciências sociais e em cursos de formação de professores. Os estudantes da educação básica em todo o país estudam temas relativos às vulnerabilidades do regime democrático, aos projetos autoritários de governo associados   aos golpes militares, a violência política e a reconstrução da democracia. Também costumam visitar certos locais alcunhados de Sítios de Memória do Terrorismo de Estado e, periodicamente, fazem   pesquisas históricas por meio de consulta a arquivos oficiais e entrevistas com pessoas que vivenciaram aquela época.

A situação no Chile é muito diferente. Neste país o ensino da ditadura é condicionado por dois fatores quais sejam a continuação amainada do medo que atormentou a população durante o governo de Pinochet e o entendimento por parte de muitas pessoas, principalmente políticos, de que os acontecimentos aí manifestados pertencem a um passado distante e os indivíduos mais jovens não os presenciaram. No entanto, o currículo nacional comum, desde o ano de 2009, prevê para a educação básica o estudo dos fatores que contribuíram para a ocorrência do golpe e a relação entre a ditadura e os direitos humanos   os quais até então eram praticamente ignorados. Apesar dessa previsão os professores têm certa autonomia para selecionar os conteúdos que são ensinados e o valor que atribuem a eles. Embora relativamente independentes, a maioria dos docentes   tende   a minimizar o número de aulas destinados a estes conteúdos bem como inclinam-se a evitar a análise de temas controversos e sensíveis provocadores de reações emocionais que requerem tomadas de posição.

Em nosso país o ensino da ditadura desde a década de sessenta do século passado até os dias atuais tem sido circunscrito variavelmente por um determinado conjunto de fatores: grande parte   dos professores adotam a posição de que não é conveniente assumir posições relacionadas à construção de memórias,   outros argumentam que o estudo de períodos mais recentes pode causar constrangimentos porque alguns protagonistas da época ainda continuam vivos,   muitos reclamam que o   tempo disponível para estudo é bastante reduzido, reina também entre eles a preferência em abordar temas consagrados que se situam em datas mais distantes. Acrescente-se neste conjunto a presença de grupos minoritários atuantes   que reivindicam a volta dos militares ao poder, a lei da anistia que favoreceu o esquecimento do passado e o majoritário sentimento pragmático que almeja utilizar de alguma forma aquilo que é previsto ser aprendido.    

A partir dessa década, ou seja, com a tomada do poder   pelos militares em sessenta e quatro, até a devolução dele aos civis, o ensino de história das ditaduras, suas formas e manifestações permaneceu latente na educação básica. Aliás,   o vocábulo   ditadura   nem   aparece nos livros escolares da época. A própria vigência do regime ditatorial comprometido com a formação de um cidadão passivo se revelou como o fator impeditivo mais importante. Um assunto específico como este dificilmente poderia ser abordado uma vez que ocorreu a junção de História e Geografia em Estudos Sociais, ganharam proeminência a Educação Moral e Cívica e a Organização Social e Política do Brasil além de terem sido excluídas a Psicologia a Sociologia e a Filosofia. Esse período autoritário é abordado em uma unidade didática denominada República Nova sob os títulos de A Deposição do Presidente Goulart pelas Forças Armadas e o Movimento de 31 de Março de 1964 e por meio de uma metodologia salientadora da memorização e avivadora dos grandes feitos.

O ensino da ditadura nas escolas começou oficialmente na década de noventa quando emergiram a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e os Parâmetros Curriculares Nacionais que apresentaram a volta da História e da Geografia e a previsão da abordagem sobre o período antidemocrático. Foi um início cauteloso por se tratar de um evento hodierno. Com efeito,   a expressão mais empregada nos manuais escolares de então foi O Regime Militar Pós-64 e neles não aparecem   posicionamentos   críticos e nem comentários sobre o envolvimento de civis. Tais Parâmetros, dotados de um   caráter não impositivo, trouxeram em seu bojo um eixo temático denominado   História das Representações e das Relações de Poder que abarcou os temas das guerras, das Revoluções de 1930 e 1932, o Estado Novo e o já citado Regime Militar Pós-64. 

Apesar dessa majoritária conduta diligente,   este período se mostrou também como o ponto de partida da publicação de livros didáticos que trouxeram capítulos   onde apareceram a palavra golpe,   as menções   aos crimes cometidos e a contestação da ocorrência de uma revolução. Outrossim começou a intensificar-se a preocupação por parte do aluno com a assimilação de certos conteúdos apenas   para ser aprovado em vestibulares e no exame nacional do ensino médio. 

Depois de vigorar por muitos anos os Parâmetros Curriculares Nacionais deram lugar à Base Nacional Comum Curricular que surgiu em 2017 e já está sendo posta em prática. Nela aparece uma unidade temática denominada “Modernização, Ditadura Civil-Militar e Redemocratização: O Brasil Após 1946”. Assentada numa perspectiva crítica a mesma tem a pretensão de que os alunos compreendam o processo que resultou na ditadura civil-militar e discutam questões relacionadas à memória e à justiça sobre os casos de violação dos direitos humanos, os processos de resistência e as propostas de reorganização da sociedade brasileira durante o seu desenrolar. A aprendizagem discente deve ocorrer por meio do exame das múltiplas versões interpretativas, do reconhecimento de hipóteses e da avaliação de argumentos com vistas à elaboração de proposições próprias. Ressalte-se que nada impede que a versão preferida dos militares seja contemplada neste exame.


Imagem de destaque: unsplash

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *