O direito de aprender é indissociável do direito de ensinar

Carlos Alberto de Moraes

“Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:

I – Igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;

II – liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber;

III – pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas…”

            Constituição Federal do Brasil, 1988

Em um país tão ferido pela desigualdade e erigido estruturalmente sobre o racismo, nossa Constituição Federal aponta, corajosamente, para a afirmação de direitos e para o enfrentamento dos processos de marginalização e exclusão de cidadãs e cidadãos.

Na esfera da educação, a Constituição Federal assegura a pluralidade pedagógica, a liberdade de aprender, a liberdade de ensinar. Afiança, ainda, que a educação tem o compromisso de discutir as raízes da desigualdade, de investigar como a desigualdade se construiu histórica e socialmente, e de discutir quais alternativas podem ser pensadas, criadas e praticadas para viabilizar as mudanças desejadas.

A escola pública é o território do diálogo, da interlocução das diferenças, da dúvida, da pergunta, da busca, da convivialidade, da perspectiva do coletivo, das possibilidades de transformação da realidade, do exercício dos direitos. Não existe educação neutra. A pretensa neutralidade, no âmbito educacional, traz em seu bojo posicionamentos reacionários e autoritários, ideologias, hipocrisias.

Na escola manifestam-se conflitos diversos, pois ela é espaço vital e basilar para a eclosão de conflitos, para a evidenciação dos dissensos. Por isso, as bases curriculares nacionais, por mais que superficializem a multidiversidade e o confronto de ideias, intentam disponibilizar elementos, proposições, componentes, que podem e devem ser abordados no currículo, abrangendo diferentes visões de mundo, dissonantes teorias, variados ângulos, heterogeneidade de pensamento.

No entanto, uma educação percebida como um direito social que requer o desvelamento do conflito provoca, como ressonância, a partilha do poder.

E é aí, vislumbrando possibilidades de derrocada do poder, que se instalaram movimentos reacionários de depreciação, perseguição, censura e condenação de trabalhadoras e trabalhadores em educação. Pode-se afirmar, hoje, que a maioria desses movimentos orbitam o trágico universo e a falsa moralidade do Escola Sem Partido.

O Escola Sem Partido expressa, na educação, o que os Institutos Liberais (e, especialmente o de Brasília) revelavam: a preocupação com a esquerdização no país. Lembremos do contexto histórico em que surge o Escola Sem Partido: eleição do presidente Lula, implantação do Programa Fome Zero como plano definidor das políticas direcionadas aos segmentos sociais com padrão indigno de vida, políticas ambientais, programas para criação de empregos, assistência e promoção social, cultura, saúde, trabalho, desenvolvimento agrário, direitos da mulher, direitos humanos. Tudo isso acarretou um esboço do que poderia vir a seguir: a fragilização da hegemonia da classe média, branca, patriarcal e cristã (majoritariamente católica). O ápice do abalo sísmico que poderia fazer ruir o poder da classe dominante ocorreu justamente com a promulgação da Lei 10639, em 2003, que tornou obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana em todas as escolas, públicas e particulares, do ensino fundamental até o ensino médio (ressalte-se que, em 2008, a Lei 11645 acrescenta o ensino da história e cultura dos povos indígenas). Desvelar o racismo no Brasil constitui um verdadeiro terremoto nas configurações do poder!

Nessa conjuntura, os grupos de direita se reorganizaram e tentaram barrar as mudanças que o horizonte acenava. Um desses grupos, liderados por Miguel Nagib (quadro oriundo do Instituto Liberal), deslocou-se para o campo da educação, argumentando que o esquerdismo doutrinador havia invadido as escolas. Criaram, então, em 2004, uma página na rede mundial de computadores e escolheram, inteligentemente, o nome “Escola Sem Partido” (ora, evidentemente, ninguém quer uma escola Com Partido; ninguém quer que seus filhos e filhas estudem em uma escola filiada a determinado partido político).

A princípio, as proposições do Escola Sem Partido não alcançaram muita repercussão no país, pois a população atravessava um momento de entusiasmo devido aos resultados dos programas de geração de empregos, do Bolsa Família, de aquisição da casa própria, de acesso à universidade. Porém, quando o debate sobre o Plano Nacional de Educação se expandiu e se propagou (no período de 2009 a 2014), o Escola Sem Partido ganhou ênfase ao defender a presença, nas escolas, de uma suposta ideologia de gênero. Na sequência, o discurso antiesquerdista optou por impregnar-se de uma exortação fortemente cristã, com grande adesão dos setores mais reacionários e fundamentalistas das igrejas católicas e evangélicas. Segundo o Escola Sem Partido, a escola pública estava “contaminada” pela doutrinação comunista e esquerdista que apregoava determinados valores que não seriam os valores típicos da civilização ocidental, e ainda que os pilares ocidentais judaico-cristãos seriam destruídos se os profissionais da educação esquerdista e anti família não fossem barrados.

Com o apoio da grande mídia (bancada pela burguesia) que atuou na difusão das concepções nefastas do Escola Sem Partido, a última década foi de perseguição, denúncia, tortura psicológica e emocional, opressão, intolerância, vigilância constante e censura das trabalhadoras e trabalhadores em educação. Já foram contabilizados mais de 200 processos contra educadores e educadoras Brasil afora.

Os tentáculos do Escola Sem Partido ainda estão aí, amordaçando e asfixiando professoras e professores: meritocracia, escola antigênero, escola sem pornografia, educação sem Paulo Freire, educação domiciliar, militarização das escolas e muitos outros aspectos.

Porém, a pior herança deixada pelo Escola Sem Partido é a autocensura a partir do medo.  Professoras e professores têm traduzido, com sua vida, no cotidiano escolar, o medo e a solidão de ser educador/a.  O medo faz calar, faz evitar o conflito em sala de aula, traz a dramaticidade do definhamento da alegria, traz a impossibilidade de se expor e de interagir com colegas, estudantes e comunidade com transparência. Um professor tem que pensar duas ou três vezes no que vai falar ou fazer em sala de aula. Tudo pode ser gravado, filmado, vigiado, censurado, manipulado.

Apesar do Supremo Tribunal Federal já ter determinado, interpretando a Constituição Federal, que não pode haver censura nas escolas e que professoras e professores têm liberdade de expressão no exercício de sua função, o medo ainda impera. Como superá-lo, então? Como resistir e reagir à censura e à autocensura?

Considerando que o direito de aprender é indissociável do direito de ensinar e que a liberdade de aprender é inseparável da liberdade de ensinar, impedir que uma professora ou um professor fale é o mesmo que impedir que um estudante aprenda. E nós aprendemos em comunhão. Portanto, o caminho é não se isolar, não naufragar na solidão, não fazer enfrentamentos individualizados, não sofrer solitariamente. Os/as profissionais da educação necessitam de organizar-se coletivamente, resistir coletivamente, fortalecerem-se coletivamente. É urgente que todos e todas estejam filiados/as em sindicatos, que participem de Coletivos e Observatórios de educação, que se integrem em centros de defesa dos direitos humanos. A censura a um só professor é uma censura a toda a categoria, a todos os estudantes, a toda a comunidade escolar, a toda educação emancipadora.

 

Sobre o autor

Professor, Pedagogo e membro do Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Betim.


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