Marileide Lázara Cassoli
Teria sido um dia como outro qualquer. Acordar, sair da cama, tomar o café e caminhar por muitos quarteirões até o Anglo. Recém inaugurado em Marília, interior de São Paulo, no boom da criação dos cursinhos nos idos dos anos 1980. Ali era oferecido o “caminho das pedras” para aqueles que sonhavam em ingressar em uma boa universidade: o “terceiro ano integrado”. Como o próprio nome indica, a proposta era conciliar o conteúdo do terceiro ano do Segundo Grau – como era chamado – com uma revisão de todo o conteúdo dos anos anteriores. Traduzindo: jornadas intermináveis de aulas regulares, plantões e revisões. Um dia como outro qualquer se não fosse pelo cartaz afixado na parede ao lado da mesa que havia sido eleita como o local ideal para os estudos. Absorta com os livros e conteúdos a serem vencidos, primeiro sentei-me à mesa, abri os cadernos e os livros e só então dirigi o olhar para o cartaz. E aí, tudo mudou. A escolha pelo curso de História já havia sido feita há muito tempo, apesar do protesto paterno que insistia no Direito como formação profissional, porém, cursar História em Ouro Preto, em uma universidade federal, me encheu os olhos e o dia de alegria só em pensar na possibilidade. E foi assim que, adentrando o cartaz que propagandeava o vestibular de História na Universidade Federal de Ouro Preto, tornei-me, irremediavelmente, uma mineira de coração. Uma amante fiel da cidade na qual vivi os melhores anos de minha juventude. Ouro Preto – ou “a Vila”, como costumávamos carinhosamente chamar – dos sinos, dos tapetes da Semana Santa, das chuvas torrenciais, do frio cortante que impregna os ossos, do fog intenso que esconde a cidade mesmo aos olhos mais atentos…. Também a Ouro Preto das festas, da cachaça com mel para espantar o frio, do vinho vagabundo que povoava as festas universitárias de então. Aprovada no vestibular, que na época era realizado no campus da PUC, no Coração Eucarístico, arrumei malas e cuias e vim! Optei por morar em Ouro Preto e me deslocar diariamente para Mariana, onde estava o curso de História. Os primeiros seis meses foram vividos em uma pensão na rua Direita. A pensão de Dona Iva. Local que escolhi na companhia de minha mãe e de minha avó, afinal, do alto dos meus 17 anos de idade e sem nunca ter saído das “barras das saias” da família era de esperar a “fiscalização” dessa primeira escolha. Foi aí que conheci Tina e Déa. Parceiras de pensão, de festas, de caronas para o ICHS (o Instituto de Ciências Humanas e Sociais da UFOP, no campus Mariana), das tensões enfrentadas por quem vive longe dos seus, amigas eternas mesmo com a distância que a vida e a geografia nos impõem muitas vezes. Da pensão passamos para a casa do senhor José, na Barra, depois para a casa do senhor Acácio, na rua Nova… Déa foi morar sozinha…. Tina mudou-se para Brasília antes do final do curso de Letras….
Todas essas lembranças – e muitas outras desse tempo – estavam lá, naquele baú que, creio eu, temos, cada um a seu jeito, conosco em alguma parte. Seja no coração, seja no “quarto dos esquecimentos”, as memórias – nem sempre boas – podem vir à tona provocadas por acontecimentos simples ou não tão simples assim. Neste caso, este texto que agora escrevo, me foi praticamente “imposto” pelas notícias recentes de desapropriação do ICHS. Fiz parte da terceira turma de graduação em História. Na época o campus do Cruzeiro, onde hoje se localiza a maior parte dos cursos da UFOP, estava em construção e não passava de um emaranhado de prédios inacabados e muita lama em dias de chuva. O restaurante universitário era um dos poucos lugares que funcionava e para lá nos dirigíamos nos dias em que o Restaurante da Escola de Minas de Ouro Preto não funcionava. O Remop funcionava na Praça Tiradentes e era o principal restaurante universitário até então.
O ICHS, em Mariana, funcionava precariamente. As condições para os estudantes das humanidades eram sofríveis, fosse em Ouro Preto, fosse em Mariana. A UFOP estava em processo de formação e se hoje há uma gama de cursos em todas as áreas do conhecimento, naquele momento a universidade compreendia os quatro cursos tradicionais de Engenharia (antiga Escola de Minas), o curso de Farmácia (oriundo da também tradicional Escola de Farmácia), o curso de Nutrição e os cursos de História e Letras, em Mariana. Para nós, estudantes das humanidades, não havia repúblicas (da Universidade) disponíveis. A tradição falava forte demais e não havia praticamente abertura alguma para que fossemos incorporados às “casas” estudantis tradicionais da cidade. Já estávamos quase no meio do curso quando as primeiras repúblicas “mistas”, formadas por moradores que faziam cursos diferentes, foram finalizados no campus novo, no Morro do Cruzeiro. As idas para Mariana eram sempre “de carona”, ônibus de linha comum ou, nos horários de aula apenas, o ônibus que a Universidade disponibilizava gratuitamente. Não havia restaurante universitário e somente depois de algum tempo foi criado um esquema de se transportar a comida em vasilhas térmicas do RU (Restaurante Universitário) de Ouro Preto para o ICHS. Muitos sacolejos e atrasos e, finalmente, lá chegava o almoço ou o jantar….
Já nessa época a polêmica, que hoje resultou na desapropriação do ICHS, se impunha como um retrato da precariedade das condições que enfrentávamos para frequentar as aulas e vivenciar a experiência universitária. O contrato com a Igreja sempre suscitou o receio de que em algum momento seríamos “expulsos”. Muitos de nós, eu inclusive, defendiam a construção de um prédio para as Ciências Humanas no campus do Cruzeiro, onde realmente a vida universitária ganhava contornos. Eram inúmeras as dificuldades a serem enfrentadas mesmo por aqueles estudantes que moravam em Mariana. Transporte, aluguel, alimentação, a biblioteca precária…. Foram muitos os debates e o senso de preservação de um patrimônio, o antigo Seminário e Capela de Nossa Senhora da Boa Morte, conjunto que hoje abriga parte significativa do ICHS, falou mais alto. E assim, permanecemos em Mariana para assistir, hoje, tantos anos depois, a concretização de um receio, qualificado na época, por muitos, como infundado. Revivo assim, e me dói profundamente, o mesmo descaso com alunos e professores que enfrentamos nos primeiros anos do ICHS. Não cabe, aqui, debater sobre quais foram – e são – os interesses econômicos, políticos ou jurídicos que envolvem essa decisão. Mas não poderia deixar de registrar minha angústia com o descaso crescentecom as Ciências Humanas que marca a História desse nosso, cada dia mais, triste país. Embalo o cartaz que me fez migrante a salvo em meu coração e lamento, muito mesmo, que quase nada tenho mudado.
Imagem de destaque: Antiga biblioteca do ICHS
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