O bicentenário no Pará: Cabanagem e uma luta por direitos e cidadania

Danielle Figuerêdo Moura

“O Cabano Paraense”. Alfredo Norfini, 1940, Museu de Arte de Belém

A Cabanagem (1835-1840) foi um movimento social que explodiu na vasta área da calha do Rio Amazonas. Sua repercussão maior deveu-se ao fato de ter sido o único movimento em que os levantados tomaram o poder político da capital do Grão-Pará, Belém, entre 7 de janeiro de 1835 e 13 de maio de 1836. O movimento eclodiu em meio aos árduos debates e conflitos da formação do Estado.

Através de jornais, relatórios de Presidentes de Província e de Ministros, e correspondências entre diversas autoridades municipais, provinciais e imperiais, a Cabanagem foi pintada naqueles dias como uma grande ameaça ao Império (apesar de não ter sido separatista) e à civilização. Mais do que uma contestação política, uma “sedição” ou ação de “facciosos”, configurava-se como uma “rebelião”, uma “revolta” de toda sorte de gente que ameaçava subverter a “ordem” e que cometeu os piores crimes. Seus feitos atestavam sua “inferioridade”, “ferocidade” e “barbárie” que a diferenciavam dos demais movimentos sociais pelo Império. Era uma gente, uma “raça” composta de negros, índios e mestiços, que na visão do Presidente Francisco José de Souza Soares d’Andréa se diferenciava da população de outras províncias que era majoritariamente da “raça branca” e, portanto, detentora de uma maior “moralidade”. Nem mesmo a Farroupilha, definida pelo Ministro Paulino de Sousa como “a mais séria e complicada sedição”, causou tanto horror.

Para muitos membros da corte e da elite provincial, a guerra que ocorreu no Grão-Pará era entre “civilização” e “barbárie”, brancos e “gente de cor”. Mais do que a pintura de um quadro de uma “malfadada província”, assolada por toda sorte de sujeitos que desafiavam os princípios de “ordem” e “humanidade”, construiu-se a imagem quase homogênea do “cabano”, cujas características justificavam o ferrenho combate. Pela sua “natureza primitiva” (ligada ao mundo natural da província), poucas ou nenhuma eram as possibilidades de reabilitá-los.

A caracterização feita aos cabanos não era apenas uma justificativa ao combate ou a implementação de medidas civilizatórias (como o trabalho forçado em obras ou agricultura). Desqualificá-los e desumanizá-los no nível do discurso era em si uma forma de combate e estava diretamente ligado ao contexto da formação do Estado. Se a sua construção envolvia questões do imaginário, a elaboração de uma imagem de quem eram seus inimigos também fazia parte não só do reforço do ideal de Estado, mas também dos meios encontrados por uma elite dirigente para justificar o combate por meio do discurso e da ofensiva armada àqueles que se opunham à ordem que se tentava implementar e legitimar.

A identidade cabana, seus objetivos e visões de mundo, porém, extrapolavam as definições dadas pelos seus opositores. Eles eram indígenas, mestiços, negros escravos ou forros, brancos livres pobres, roceiros, pequenos e grandes proprietários, padres, jornalistas, soldados, políticos, juízes e negociantes. Dentre os fatores que propiciaram a eclosão do movimento cabano estavam os problemas econômicos existentes desde o final do século XVIII. Acrescente-se a isso os conflitos políticos que ocorriam na província desde as lutas pela independência, como as perseguições a líderes políticos como Batista Campos e as reivindicações por maior participação dos paraenses no governo provincial. Ademais, é preciso considerar a crescente insatisfação popular que reclamava por mudanças nas estruturas sociais herdadas do período colonial, marcadas pela opressão e exploração.

A circulação e interpretação das novas leis imperiais na capital e nas diversas vilas do Grão-Pará também teve seu peso. O entendimento e as demandadas locais do novo conjunto legal extrapolaram o proposto pela Corte. Nascia uma interpretação bastante diferente e radical e as identidades que faziam estas leituras, quanto mais locais, mais radicais e identitárias localmente, ampliando a discussão sobre direitos. Elas eram lidas e tomadas como bandeiras de grupos que a princípio estariam excluídos de direitos para os quais os legisladores não pretendiam estender os benefícios das leis. Contudo, a própria existência e publicação dessas leis tornava inviável qualquer tentativa de impedir que grupos excluídos fizessem sua leitura própria e demandassem direitos para si. Soma-se a isso a experiência da mobilização política durante as eleições municipais para juízes de paz e vereadores que, equacionadas com um repertório de valores e concepções de direitos, certamente foi elemento fundamental para a eclosão e diversidade de dinâmicas da Cabanagem.

Assim, não havia programa político ou ideologia cabana homogênea e compartilhada, ainda que grupos populares e senhoriais lutassem lado a lado em alguns momentos. Tampouco as classes populares agiram como massa de manobra comandada pelos cabanos oriundos da elite paraense, como Malcher, Vinagre e Angelim. Houve uma imensa luta por liberdade, diretos e cidadania. Se diversa era a identidade cabana, diversos também eram seus entendimentos de liberdade e de direito, seus desejos de mudanças e seus ideais políticos e revolucionários.

A Cabanagem, importante história de luta e resistência em vários sentidos, é tema de diversos estudos. Cada um a seu modo contribui para o entendimento do Grão-Pará naquele contexto e da diversidade do movimento cabano. Ademais, convidam à reflexão sobre quais conexões podemos estabelecer entre as histórias de vida dos sujeitos daquele momento e o que vivemos hoje. Na próxima semana, as pesquisadoras Maria do Socorro Lima, Michelle de Queirós e Letícia Barriga apresentarão outros olhares sobre o Grão-Pará e o processo de emancipação e a História da Educação no Bicentenário. Não perca!

 

 

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