O anarquismo místico de Tolstói

Joachin Azevedo Neto

O conde russo Leon Nikoláievitch Tolstói (1828-1910) possui uma consolidada fama internacional que tem resistido aos modismos do tempo. Oriundo de uma tradicional linhagem de aristocratas eslavos, Tolstói recebeu uma educação extremamente refinada. Além disso, o autor transitou entre vários estereótipos destinados aos homens pertencentes às altas castas da sociedade russa: foi um apostador compulsivo; latifundiário influente que não hesitou em se valer de seu status para seduzir servas; oficial militar impetuoso e místico utópico. Proponho aqui discorrer um pouco sobre a fase de sua vida na qual esse literato renegou o valor de suas obras canônicas a exemplo de Ana Kariênina (1887), A morte de Ivan Ilicht (1886) e Guerra e paz (1869), para se dedicar a confecção de panfletos políticos.

Tolstói começou a sistematizar seu pensamento em forma de doutrina religiosa a partir de 1882, quando visitou um dos inúmeros albergues localizados nos cortiços de Moscou. O escritor ficou horrorizado diante da degradação humana e da pobreza que encontrou em uma das áreas mais miseráveis da capital russa. Segundo a biógrafa Rosamund Bartlett, em Tolstói: a biografia (2013), fiel às inclinações anarquistas que começou a cultivar desde o início de sua vida literária, Tolstói empreendeu uma campanha para a arrecadação de fundos, comida e agasalhos para os pobres. Nesse sentido, o escritor russo estava buscando colocar em prática seu ideal de um cristianismo “libertário”.

Para Bartlett, inspirado diretamente pelo Evangelho de São Mateus, do Novo Testamento, “Tolstói instigou os moscovitas a superar seu medo dos percevejos, das pulgas, da febre tifoide, da difteria e da varíola que se alastravam em meio às condições imundas e aviltantes em que os pobres eram obrigados a viver” (p. 369). Após o ano de 1900, em um momento no qual a Rússia passava por uma série de levantes populares contra o tzarismo – um dos regimes políticos mais autoritários da Europa – Tolstói usou sua fama internacional para difundir seu ideário. O autor trocou as roupas de fidalgo por simples vestimentas de camponês e passou a defender as prédicas de que um estilo de vida abstêmio, vegetariano, fraterno e pacifista era o melhor caminho para uma existência humana mais plena.

Em 1904, o autor assinou o libelo A insubmissão (2010): traduzido para o português apenas recentemente. Trata-se de uma crítica contundente aos exércitos que, para o escritor russo, anulavam as liberdades individuais e promoviam a bestialização dos indivíduos em nome de supostas ameaças estrangeiras.  Segundo Tolstói, “pode-se bem mais afirmar (…) que a atuação do governo com seus métodos de castigo, antiquados e desapiedados, suas galés, prisões, forcas e guilhotinas, muito abaixo do nível geral de moralidade, tende bem mais a rebaixar o padrão moral do que elevá-lo, e mais aumenta do que diminui o número de criminosos” (p. 35-6). As guerras, para o autor, não passavam de genocídios orquestrados pelas elites contra os trabalhadores.

Esse texto filosófico apresenta a principal tese do escritor sobre o controle social mantido pelo Estado. De acordo com Tolstói, esse poder estaria sedimentado na corrupção, presente principalmente na cobrança de impostos abusivos aos cidadãos; na violência física e moral empregada pelos militares contra os inconformados e em um determinado tipo de educação oficial hipnótica que sugere aos membros de uma comunidade um comportamento obediente.

Também já desfrutando de um imenso prestígio, em 1898, Tolstói publicou o ensaio O que é arte?: uma polêmica contra os estetas franceses, alemães, ingleses, italianos e espanhóis. O texto conta com quatrocentas laudas. Realmente, uma longa reflexão e que causou um grande impacto entre homens de letras das mais variadas tendências. A edição dessa obra traduzida diretamente do russo para o português foi publicada em 2002, pela Ediouro. O escritor atacou com todas suas forças a ideia de que manifestações artísticas como esculturas, a pintura ou a literatura tinham a função de proporcionarem prazer aos seus consumidores.

Para Tolstói, “Para definir arte com precisão, devemos antes de tudo parar de olhar para ela como veículo de prazer e considerá-la como uma das condições da vida humana. Ao considerá-la dessa forma, não podemos deixar de ver que a arte é um meio de comunhão entre as pessoas” (p. 65). Nesses termos, talvez na esteira do pensamento do crítico paraense José Veríssimo (1857-1916), em Homens e cousas estrangeiras (1902), pode ser que o zelo desse escritor pela sua imagem de doutrinador o tenha atrapalhado um pouco no ofício de ficcionista. Porém, Tolstói, ao sacrificar suas riquezas e conforto, “por amor das suas convicções morais, religiosas e sociais” demonstra “que na alma misteriosa e trágica dos Russos há energias morais quase desconhecidas no nosso mundo ocidental” (p. 204).


Imagem de destaque: Russian State Library.

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