O amor fica , a leitura também –  um tanto que vem lá do Pedro Américo

Ivane Laurete Perotti

_ Profe, onde me sento?

_ Escolhe um lugar, Pedro!

_ Qualquer um?

_ Qualquer lugar desocupado…

Pedro desapareceu da vista. Acusado pelos colegas, deixou-se ver. Sorrindo. Acomodado à mesa maior.

_ Está bem aí, Pedro?

_ Estou, professora. Daqui eu vejo bem.

_ Bem, ou melhor?

_ Bem…

_ Tem certeza?

_ Tenho!

_ Então, vamos iniciar…

_ Mas, profe?  …é o seu lugar!

_ É, Gustavo ?

_ Claro! Óbvio!

_ Mais que óbvio!

_ Onde você vai se sentar?

_ E quando eu me sento?

_ Hummm…mas você pode querer se sentar.

_ Talvez!

_ E o seu lugar?

_ Em precisando, sento-me aí. Agora…

O advérbio estalou olhares. Acostumados. Mas fingir surpresa tinha o seu charme. A sala, menor a cada dia, transpirava. O calor marcava-nos corpo e espírito. Espalhando vozes, um ventilador rouco, empoeirado, a meio teto das necessidades. Adereço carcomido.  Volume na precarização da escola. Mais um entre os tantos que o desmonte silencioso transformava em discurso de mérito. Desmerecimento para a educação.

_ À leitura!

 Livros em punho. Cervantes em cena: adaptado ou não, valia cada signo.

_ Eu sou Escorpião.

_ De…de escorpião, Valentina. De…

_ Besteira! Vocês acreditam em tudo, Sofia.

_ Os signos linguísticos…

_ A gente sabe, profe! Relaxa!

_ Ainda bem!

_ Horóscopo é pecado, né?

_ Fala sério, Isaac! Tem no jornal.

Processualmente venosos são os verbos em trabalho de leitura. Porosos. Bitransitivos. Regidos em jogo aberto. Zaga dupla nas mãos do dito e do não dito. Implicado. Metáforas debulhando-se como em época de colheita. Milharal flamejante.

Ler é “dar de fuças” com espelhos históricos. Homéricos. Lentes para alcançar a mente e o espírito. Ler é um processo de abrir velas. Um beijo na face do  vento interno. Fugaz ou tempestuoso. Em brisa ou vendavais. No tempo que se esconde e cutuca. Pinica.  A leitura é processo. Destampa fortunas à concha da alma. Chave de reflexão. Gôndola de comportamentos. Corredor em pistas toantes. Surdas.  Dedilhar de olhos sobre o plano da escrita. Planejamento. Interpretação.

_ Estou pensando no Holmes!

_  De Formigas?

_ Não, da Inglaterra.

_ Ah! Não conheço.

_ Irmão da Enola…

_ A Enola é que é irmã dele, Lucas! Ela é que é…

_ Nunca saí do Brasil.

_ É irmão do Miguel?

_ Outro?

_ Cervantes, Arthur!

_ O cara é castelhano, a profe já falou, Cecília.

_ Qual deles?

_ Ele não é castelhano. Nasceu na Espanha, Ana Clara.

_ Aiii…

Dourada é a oralidade vítrea. Crisálidas abundantes. Pupas linguísticas acalentando a significação. Algumas sonoras. Outras, murmurantes. Todas em constante movimento. Palpáveis como a neve que ludibria o sol no interior de uma unidade lunar. Singular.

_ Muito bem, retornemos ao texto.

_ Não tem outro jeito, né profe?

_ A escolha é sua.

_ É que…estou pensando nesta obra do MC e… na sua cadeira.

_ E como é?

_ O texto é um lugar e um des/lugar. É do autor, mas não é. E a cada vez que é lido, é ainda menos. Ou mais? Ahhh…me perdi!

_ Gostei dessa imagem.

_ Pensa , profe: MC escreveu, mas não é dele. É e não é, entende? Quando a gente lê, passa a ser nosso. Mas não é… a gente tenta pensar no que o MC pensou. O que ele estava pensando quando escreveu.  Mas o pensamento é nosso.

_ Muito interessante, Thiago.

_ Muito bagunçado, professora.  O Thiago está igualzinho ao Dom Quixote… leu demais!

_ Igualzinho à qual parte da narrativa?

_ Aquela…do moinho!

Não era mais o calor a banhar em faíscas a sala apertada. Era a cena eletrizante derramando-se sobre mesas e carteiras. O alquebrado e rouco ventilador avançou as  pás enferrujadas sobre as cabeças adolescentes. O ruído repetia-se, ameaçador. Poeira carregada no lombo do monstro. Monstros. Cavaleiros. Cavalaria. Avante! Avante! Desembainhadas, muitas espadas. Poucos Sanchos. Mais Quixotes. Dons de La Mancha. Filhos de alguém. Finos na imaginação. Leitores  cambiando estágios. Gestos.

_ Venham monstros! Morrerão pelo aço de minha espada!

_ Pela minha!

_ Coragem, Catalunha! A Espanha não faltará!

_ À glória!

_ Aos cavaleiros!

_ Às novelas!

_ Da G-l-o-b-o???

A voz  entrou pelo funil. Pasmos pela interrupção, retornaram, vagarosamente, à sala de aula. Haviam ressuscitado o fidalgo apaixonado pelos romances de cavalaria. Instantes de puro deleite. Fruição. Um pequeno filho de alguém. Idade avançada. Quase senil. Um leitor aficionado. Um solitário do Séc. XVI visitara os leitores. Deixara-lhes o gosto pela interpretação. Marca indelével das histórias escritas à pena atemporal.

_ Professora, a leitura fica!

_ Fica! E…  me faz lembrar de alguém que escreveu algo parecido …

_ Que fica? Quem?

_  Pedro Américo! Quando poeta sobre o amor.

_ Americano?

_ Sim…lá das bandas do Ouricuri.

_ Pernambuco!

_ Não conheço.

_ Quem?

_ O americano.

_ Américo é um poeta de grande valia.

_ …cavalaria?

_ Pode-se dizer que ele conhece espadas. Mas a vida lhe reservou palavras.

_ Poeta luta?

_ Sempre!

_ Nunca imaginei.

_ Pois é…ele escreveu “Amor que fica”, um dos poemas da obra “Coisas”(2015).

_ Que coisa!

_ Como é o poema, profe?

_ Começa assim: “…/Assim foi e assim seria/_ fica amor/o amor…/…”

_ Profe, você tem preconceito contra palavras?

_ Não… é só que eu estava…

_ Então fala!

_ “…o amor pica/…”. O autor usou um verbo da primeira conjugação, na terceira pessoa do singular e…

_ Você imaginou que iríamos pensar no substantivo, né?

_ As palavras têm eletricidade, né profe?

_ Têm, Bernardo! E estão sempre…

_ Escondendo a tomada!

_ Talvez seja isso mesmo, Jorge.

_ A leitura  fica. Isso é memória, né, profe?

_ É, mas não apenas isso…

_ A leitura também pode picar, né ?

_ Pode! De muitas formas. E como diz um querido amigo meu:  as abelhas também picam, mas a leitura carrega antídotos.

Para saber mais
FARIAS, Pedro Américo de. Coisas – poemas etc. Recife: Linguajar Editor,2015.


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