Novembro

Dalvit Greiner

Temos assistido e vivido cenas de horror neste país tropical e abençoado por Deus. Porém, é preciso saber que falamos de um Deus do Antigo Testamento: guerreiro, militarizado e violento. A direita fascista que nos governa não conhece outro Deus e em nome dele comete barbáries: das cruzadas contra os mouros às diásporas contra os negros. Primeiro, uma matança indiscriminada dos indígenas com doenças, padres-nossos e ave-marias, no corpo físico e no corpo simbólico. Segundo, a mesma estratégia com o povo negro, trazido à força da África e batizado em nome europeu. Ambos descartados quando inservíveis ao sistema. Terceiro, farta distribuição de terras aos brancos europeus do final do século XIX, principalmente na Região Sul do país – Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Não à toa, o Paraná é o único estado brasileiro no qual as chances de um adolescente ser assassinado, seja branco ou negro, são iguais.

O capitalismo é um sistema de utilidades. O capital se reproduz e, para fazê-lo, lança fora toda e qualquer regra que o impede de se aumentar cada vez mais. É nessa medida em que precisamos ler o horror que grassa em nosso país tropical. Aqui não era terra de negros. Com o genocídio indígena acabou por se transformar em terra de brancos. Os negros foram trazidos, escravizados, contra a sua vontade. Eram uma mercadoria que o capital inglês e português caçou na África financiando-se com alguns produtos comerciáveis. Para cumprir o ciclo, a mercadoria precisa se gastar, desaparecer, morrer e assim dar lugar a outra. Outras, que foram sendo trazidas substituídas ao longo de três séculos e meio. E os lucros sendo acumulados.

Assim, o Brasil tornou-se uma terra de brancos com poucos indígenas e milhões mais de 50% da população se autodeclara – de negros. É dessa forma que os brancos do Brasil convivem com os negros, coisificando-os e descartando-os até hoje. A essência do racismo está na mercantilização dos corpos: para o trabalho, para o prazer, para o descarte. Não podendo nem conseguindo trabalhar, você vai para o descarte. A mercadoria já cumpriu a sua função, desgastou-se, tornou-se obsoleta e, portanto, deve ser substituída.

O presidente e o vice-presidente da República foram assertivos: não existe racismo no Brasil. Isso é a mais pura prova de que o capital precisa de pessoas (não importa a cor da pele) sem capital, mas que se vendem por qualquer ninharia para manter a ideologia capitalista. Se o mandatário geral do país afirma, com todas as letras, de que não há racismo no Brasil, a morte de milhares de negros torna-se cada vez mais insignificante. Num capitalismo financeiro e globalizado já não faz mais sentido manter aquele velho exército de reserva de mão-de-obra. Cuidar desse exército para que substitua aquela mão-de-obra que adoeceu, morreu ou tornou-se obsoleta por qualquer outra forma ou motivo.

Para a cara gente brancabrasileira os outros – indígenas, negros, ciganos, todos os demais não brancos tornaram-se mais descartáveis ainda. Assim, a estratégia de descartar os corpos negros adoecidos no mar; ou ainda, aquele excesso de cargaque denunciava a mercadoria vinda da África, o que significava a apreensão e o afundamento do navio negreiro, repete-se hoje com maior eficácia e eficiência palavras caras aos empresários o descarte dos corpos obsoletos.

O que quero dizer: para um capitalismo globalizado não há mais necessidade de se manter uma reserva de mão-de-obra. A mão-de-obra também se globalizou. Por ser mundial o capital vai busca-la em qualquer lugar do mundo. Por isso a morte recai sobre as periferias: num sistema de acúmulo, gente que não se dá muito barato é cara para o sistema (daí a tentativa de escravizar o trabalhador brasileiro, que é negro!). Na visão capitalista, gente que não produz não faz sentido viver. Não é útil. Não é importante. Não importa.

Assim é preciso eliminar essas pessoas, porém não se pode fazê-lo de forma tão explícita como a fábrica de morte nazista, que na sua racionalidade macabra operava dentro dos princípios industriais. Hoje, a quantidade de morte produzida supera em muito os milhões que os nazistas mataram. Da mesma forma que o capitalismo não prescinde do modelo industrial, mas modifica-o para as suas necessidades, a maneira de produzir a morte também se modernizou. Aquele modelo fábrica tornou-se obsoleto. A esteira fordista já não é mais funcional. Mata-se aos poucos (para o sistema ainda são poucos), mas na soma total…

Mata-se de negligência ao abandonar a população à sua própria sorte com seus próprios recursos em meio a uma pandemia sem cura e sem vacina; mata-se de tiros em meio a supostos tiroteios chamados de autos de resistência, nos quais morrem negros jovens; e, ao fim, se mesmo assim, esse povo não morre, mata-se de pancada e asfixia, na porta do supermercado francês em solo brasileiro.

No mundo existe capitalismo. E o capitalismo é o pai do racismo! É urgente matar os dois e, se necessário, os seus lacaios. Lacaios: palavra tão antiga e tão atual.


Imagem em destaque: Filipe Araujo / Fotos Públicas

 

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