Nos querem em pedaços

Érika Cecília Soares Oliveira1

Késia dos Anjos Rocha2

Janeiro de 2021. Virada do ano. Os jornais veiculam a imagem do presidente lançando-se ao mar no litoral paulista e nadando ao encontro de uma massa de banhistas eufóricos que o ovacionam aos gritos: Mito! Mito! Mito! O contexto? Uma Pandemia Mundial. Crise sanitária global. Mortes fazendo a caixa registradora girar freneticamente como se falássemos de coisas e não de gente. De coisas e não de gente. Só de coisas. Naquela ocasião, chegamos a 200 mil mortos no Brasil. Agora já são mais de 260 mil.

Poucos dias antes, vivíamos a celebração do Natal, momento tido como de comunhão, celebração, re-nascimento. Irônico, pois velávamos 200 mil mortos. DUZENTOS. Mesmo assim, muita gente seguia tecendo a vida, assando o peru e tentando alcançar algum lampejo de paz em meio a tantos cacos. O cheiro do peru e o tilintar das taças não foram suficientes para emudecer os sonidos dos gritos de muitas de nós e nem estancar nossas feridas. Naquele natal, o “Natal do Feminicídio” como nomeou Eliane Brum em sua coluna no El País, ao menos seis mulheres eram assassinadas por seus “companheiros” nos bastidores dos perus. Ao menos seis mulheres tiveram as asas serradas e o voo interrompido naquela noite.  

Primeira semana do ano. Interior do Ceará. Uma adolescente trans de 13 anos era morta por um jovem de 17 anos. A jovem, que amava bailar ao som de Anitta e Pabllo Vittar, que sorria e sonhava com o dia em que seria influenciadora digital e lançaria sorrisos ao mundo. A jovem que de olhos fechados sonhava-cantava “seu amor me pegou, cê bateu tão forte com o teu amor, nocauteou, me tonteou…”. Seu sonho virou nuvem. Nuvem que de tão pesada se encheu de água e desaguou sobre nossas casas. Nem sei se notamos a razão dos trovões. 

Escrevemos este texto em um momento trágico para o Brasil. É deste lugar que falamos. Dos nossos corpos esmagados por uma dura realidade trazida pela morte que não para de crescer: o Brasil liderando a difícil condição de não querer saber lidar com a pandemia. Uma maquinaria azeitada para fazer funcionar o extermínio de milhares de brasileiras(os), liderada por um presidente que não se cansa de desprezar as mortes, o sofrimento, a situação sanitária. É dentro deste contexto, sufocado, que estas palavras são redigidas. Aqui, escolhemos fazer um pequeno recorte e contar um fragmento da experiência de ministrar uma disciplina como docente responsável e estagiária docente. Trata-se da disciplina Gêneros, Sexualidades e Educação que acontece em uma universidade federal sudestina ofertada para o curso de pedagogia. 

A supressão do termo gênero do Plano Nacional de Educação (PNE) em 2014 e da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) em 2017 revelou o modo como algumas conquistas de direitos para determinadas parcelas da população incomodou grupos hegemônicos, agora chacoalhados e balançados quando confrontados pela revelação de que os usos e abusos utilizados para manterem sua hegemonia político-sexual poderia ter fim. Como não poderia deixar de ser, esses grupos, acostumados com suas práticas de poder, movimentaram-se – e ainda estão se movimentando – no sentido de ficcionalizar inimigos; algo que fazem há séculos. Nessa ficcionalização ergueu-se uma cruzada antigênero que se dá, infelizmente, numa escala transnacional. 

No Brasil, tal cruzada colou-se com o avanço do neoliberalismo e, deste modo, homens no poder atenderiam e alimentariam os pânicos da população a respeito de pautas sobre costumes, homofobias antigas, misoginias cotidianas, enquanto caminhavam com seus projetos de retirada de direitos e investimentos em saúde, educação, etc.  Neste cenário, ministrar uma disciplina para futuras(os) professoras(es) de crianças para falar justamente daquilo que se quer destruir, passa a ser uma experiência que pode ser encarada como sendo vivida dentro de um furacão.  

Se o furacão deixa estilhaços, cacos, pedaços, fragmentos de tudo que um dia já fora inteiro, nossa estratégia pedagógica diante desse cenário bélico e nada ficcional tem sido convidar e ajudar nossxs alunxs a juntar os cacos, a fazerem uma bricolagem das memórias que xs compõem enquanto corpos viventes no contexto do sistema da diferença sexual, perguntando para elas – e também para nós – a quem interessa acabar com o debate sobre gênero. Vasculhamos em meio ao pó enevoado de nossas memórias e inventariamos caquinho por caquinho daquilo que nos monta – brinquedos, cores, sonhos projetados, expectativas, receituários de modos de ser, de ser homem, de ser mulher, de ser. Fazemos com xs estudantes uma Cacografia de memórias. Escrever sobre si a partir dos cacos. Cacos reais e imaginados. Cacos. Apostamos na força-furacão desses cacos como estratégia de sobrevivência e de ação política e nos apresentamos para a batalha. Nos querem em pedaços. Sem asas. Corpo domado. Normatizado. Comportado. Mas dizemos não. Como disse uma de nossas alunas em sua Cacografia: “um dia, a era do não chegou”. Então juntas dizemos não. Ao conservadorismo. Às tentativas de criminalização de nossas práticas. Às tentativas de controle sobre os nossos corpos. Dizemos sim à vida.

 

1Coordenadora do Núcleo de Estudos em Diversidades e Política (EDIS/Universidade Federal de Alagoas) e docente da Universidade Federal Fluminense.

2Doutoranda no Programa de Pós-graduação em Educação pela Universidade Federal de Sergipe. 


Imagem de destaque: Ricardo Bagge

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