No meio da noite escura… tem um pé de alegria! Ah tem!

Welessandra Aparecida Benfica

Sala de aula em meia lua. Explico. Para quem não sabe ainda o que isso significa: estar na sala de aula em meia lua é um desafio didático-metodológico-afetivo. Nessa configuração, a professora percebe o crescente. Sabedora do movimento da Capoeira de Angola, aquele em que a meia lua é o chute certeiro do jogador com o corpo girando a 360 graus, confirma que a saída para a noite que se avizinha é crescer dentro dela por altos graus. Aulas noturnas, corpos cansados, trabalho e luta. Relembra o saudoso Gonzaguinha, com a dor e a delícia de ser o que é, na docência e na vida. A professora sente que precisa da lua. E elas, sentadas em volta, mulheres e suas fases! Cada uma trouxe para a sala de aula o que traz alegria aos seus dias. Uma soa cantante, outra traduz versos que marcaram sua infância, outra ainda, relembra a “Canção dos tamanquinhos”, que sob a chuva toc e toc andam livres no caminho. A memória traz de presente a musicalidade que a acompanhava no caminho da escola, com versos que ressoam: “ligeirinhos, ligeirinhos, no silêncio dos caminhos, os que têm seda e arminhos”. (Cecília Meirelles). De repente, um livro. A experiência da mulher que lê traduzida pela filha esperançosa da cura da mãe, atravessada pela dor da aflição em vê-la retornar ao tratamento, a perda de entes queridos para a Covid 19, e aquela certeza de que os abraços e beijos não dados são os mais faltosos, vem se misturarem à aula.  Chega o livro. Na mão um pouco ansiosa, assinado com letra cursiva, exposto com orgulho no olhar bonito, que dentro da gente parece dar nós em laço de fita, ele, imponente se destaca. Traduzido como um grande representante da literatura infantil brasileira, Prêmio Jabuti de 2013, Ricardo Azevedo, em seu “No meio da noite escura tem um pé de maravilha”, ocupa a sala, na voz daquela menina e sob a beleza de seu conto, a história de amor e esperança de Coco Verde e Melancia. A voz embargada da leitora relembra a professora que a ensinou a gostar de leituras e escritas. Nome completo e tudo. E lá se vão muitos anos, desde que ela aprendeu que ler e escrever pode curar as dores da alma. A poesia invade a aula. Ela respira, pausa, continua. História de amor contada sob versos. Dá vontade de ler o livro todo na voz da moça! Dentro da meia lua. Desafio didático, agora afetivo. A menina ofegante pede calma à turma, pois a história não é longa. Não mesmo. É uma daquelas histórias que a gente ouvia de nosso avô, avó, tataravô e bisa. E que muitos pararam de contar. Pausa a aula. A professora compra o livro. O moço do correio, acostumado a entregas dos livros na casa, não entenderia dessa vez, a alegria da chegada. Grita. Devora. Sucumbe de emoção a cada ponto que o conto conta! A lua assiste a tudo e nem pode saber qual é sua oferta!  Mas sim, ofereceu a ternura que lhe é peculiar. Em sua fase mais potente, a quarto crescente, com seu ângulo de 90º graus, indica que vale mais o hemisfério do observador que a enxerga do que seu próprio formato. Observar as pequenas coisas que alegram as vidas das mulheres estudantes é retomar a boniteza do sonho de ensinar e aprender com sentido, abordado por Gadotti ao afirmar que

ser professor hoje é viver intensamente o seu tempo com consciência e sensibilidade. Não se pode imaginar um futuro para a humanidade sem educadores. Os educadores, numa visão emancipadora, não só transformam a informação em conhecimento e em consciência crítica, mas também formam pessoas. Diante dos falsos pregadores da palavra, dos marqueteiros, eles são os verdadeiros “amantes da sabedoria”, os filósofos de que nos falava Sócrates. Eles fazem fluir o saber, não o dado, a informação, o puro conhecimento, porque constroem sentido para a vida das pessoas e para a humanidade e buscam, juntos, um mundo mais justo, mais produtivo e mais saudável para todos. Por isso, eles são imprescindíveis. (GADOTTI, 2011, pág.26-27)

Retomar a boniteza dos tempos, em meio à crueldade constante que transborda nos noticiários e na vida, nos traz de volta os versos da infância, ainda latentes nas mulheres professoras da sala em meia lua:

E até mesmo, troc…  troc…

 os que têm sedas e arminhos,

   sonham, troc…  troc… troc…

    com seu par de tamanquinhos…

Para saber mais
MEIRELES, Cecília. A canção dos tamanquinhos. Álbum: Criança, meu amor. 1.ed. 1924.

GONZAGUINHA. Música: O que é, o que é. 1982

Gadotti, Moacir. Boniteza de um sonho: ensinar-e-aprender com sentido. 2. ed.  São Paulo: Editora e Livraria Instituto Paulo Freire, 2011.


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