Nem herói, nem vilão: o anti-herói 

Alexandre Azevedo

Na segunda metade do século XIX, chegou ao Brasil o romance de folhetim. De origem francesa, os folhetins, gênero a que pertencem nossos primeiros romances, eram originalmente publicados nas páginas (ou folhas, donde o nome folhetim) de jornais e revistas, em fragmentos, um pouco a cada semana, mantendo o público cativo.

Era o auge do Romantismo brasileiro, quando os leitores se deliciavam com livros como A moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo, O guarani, de José de Alencar, A escrava Isaura, de Bernardo Guimarães, ou Inocência, do Visconde de Taunay. Desses, talvez O Guarani tenha sido o maior sucesso folhetinesco da época.

Publicado em primeira mão nas páginas de O Diário do Rio de Janeiro, os leitores se “estapeavam” para conseguir, mais tarde, O guarani em forma de livro, com todos os fragmentos reunidos em um volume. Não havia número suficiente de exemplares para saciar a fome desses leitores comovidos com o amor do índio Peri pela branca Ceci. Exibindo todas as qualidades possíveis e imagináveis, dotado de força sobrenatural, Peri, belo guerreiro goitacá, tornou-se o primeiro super-herói da literatura brasileira.

Da mesma forma que esses leitores amavam Peri, odiavam Leôncio, vilão de A escrava Isaura. Guardadas as devidas proporções, muitos leitores daquela época relacionavam-se com os romances de folhetim como hoje alguns espectadores assistem às telenovelas: estabelecendo relações de amor e ódio com os personagens da telinha. Não por acaso, certos críticos, reconhecendo afinidades entre os gêneros, referem-se às telenovelas como “folhetins eletrônicos”. Mas, voltando ao século XIX, estava o público fisgado pela isca dos folhetins – cuja estrutura seguia determinados esquemas e fórmulas, com polarização moral entre os protagonistas e adesão às convenções do melodrama – quando, de repente, aparecem estampadas nas folhas d’A Pacotilha, suplemento literário do jornal Correio Mercantil do Rio de Janeiro, entre 1852 e 1853, as impagáveis e divertidíssimas Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida. Essas Memórias fugiam muito da proposta do romance social oitocentista: em vez de retratar a burguesia, descortinavam o subúrbio carioca, com os seus personagens populares, suas festas e procissões, até mesmo com o jogo do bicho, prática de contraventores que, reunidos a outros “vadios”, eram perseguidos pelo temível major Vidigal, chefe de polícia.

À parte tais novidades, a obra também inovava pela linguagem coloquial, irônica, bem humorada, com direito a apartes metalinguísticos, como a “conversa” do autor/narrador com o leitor. Ironia, humor e metalinguagem, três características que fascinaram e influenciaram a prosa de Machado de Assis, que tinha as Memórias de um sargento de milícias como livro de cabeceira. Mas talvez, o traço mais inovador desse romance seja o fato de ele ser protagonizado por um personagem que não era suficientemente bom para ser herói, nem mau o bastante para ser vilão.

Nem herói, nem vilão: assim é Leonardo, filho do Pataca, meirinho português e da Maria da Hortaliça, quitandeira das praças de Lisboa que se conheceram a bordo do navio em viagem para o Rio. “De uma pisadela e de um beliscão”, nascia o primeiro malandro de nossa literatura, nosso primeiro anti-herói.

Vivendo ao Deus-dará, sem nenhuma preocupação com o futuro, esse personagem lembrava o herói pícaro (pícaro: sagaz, velhaco, espertalhão), muito encontrado na literatura ibérica, sobretudo nas sátiras que parodiam as novelas de cavalaria, com os seus heróis de escudo, lança e armadura. Dessas paródias, Dom Quixote e Lazarillo de Tormes, são exemplos clássicos de anti-herói. O primeiro, protagonista do romance Dom Quixote de La Mancha, de Miguel de Cervantes; o segundo, do La vida de Lazarillo de Tormes y de sus fortunas y adversidades, de autoria desconhecida. Certo é que o bom caráter e o mau caráter tiveram de ceder espaço na trama romanesca para o “espaçoso” sem caráter, que entrou na literatura brasileira para nela ficarJá no século XX, outra obra célebre da nossa literatura em que vemos ressurgir a figura do anti-herói é Macunaíma, de Mario de Andrade, cujo protagonista é um índio preguiçoso e picareta, malandro e mentiroso, programaticamente distante do Peri idealizado por Alencar.

Trapaceiros e divertidos, preguiçosos e críticos do trabalho como imperativo moral, ingênuos e licenciosos, esses anti-heróis revelam aspectos do Brasil e da problemática (e sempre inconclusa) “formação” de um caráter nacional que, bem afastados das “falsificações” românticas e do esquematismo folhetinesco, continuam dando o que pensar, desafiando a percepção da nossa autoimagem e do nosso incerto destino.


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