Natureza humana – uma vida com ruídos

Lis Ribeiro do Valle Antonelli¹

Você já tentou fazer uma mesma tarefa repetidas vezes? Experimente contar até 60 em 60 segundos. Quais são as chances de você acertar exatamente a contagem sem olhar para um cronômetro? Você pode fazer essa experiência ou simplesmente tentar adivinhar por quantos segundos você erraria na sua contagem. Usando esse mesmo raciocínio, pense em todas as decisões, grandes e pequenas, importantes ou não, que você faz durante um único dia e multiplique por esses pequenos erros gerados nas suas contagens. Pensando nessa pequena escala, isso já poderia ser um problema. Imagine agora, se levássemos em conta os erros dos nossos familiares ou dos nossos amigos ou dos nossos colegas de trabalhos ou até mesmo da população que habita a nossa cidade. Dependendo da decisão que tiver que ser tomada, os erros gerados poderiam causar um desastre!

O que faz desses erros um risco é que eles raramente acontecem de forma voluntária. Nossos julgamentos não são precisos e, portanto, eles são uma fonte importante de variabilidade. Daniel Kahneman, psicólogo, prêmio Nobel de economia e escritor, explica esse fenômeno como “ruído”, no seu recente livro Noise: A Flaw in Human Judgment. Muitas das variabilidades que acontecem na natureza ocorrem para o bem, como as que impactam na evolução das espécies, mas variabilidades acontecem o tempo todo e nos trazem benefícios no nosso dia a dia. Vou lhes dar um exemplo: imaginem um veterinário, que em sua competência, manipula um cão de forma que a administração de um medicamento ocorra sem estresse. Esse veterinário pode treinar os outros profissionais para que a técnica seja aperfeiçoada de maneira que a variabilidade no manejo seja minimizada, agora para todos os animais da clínica. Podemos transpor esse raciocínio, onde algo pode ser selecionado para que outras coisas possam ser melhoradas para muitas outras coisas. Mas, o “ruído” é a variabilidade que você definitivamente não quer!

As consequências decorrentes de ruídos podem ser avassaladoras e impactar seriamente nas nossas vidas. Vamos a um exemplo concreto: pesquisas mostram que um mesmo juiz pode dar sentenças condenatórias, variando de meses a anos de condenação para um mesmo crime cometido por uma mesma pessoa. O que comprova que fatores facilmente detectáveis como racismo, sexismo e outros preconceitos não tiveram influência na decisão do juiz. 

Ainda, foi comprovado que as sentenças podem ser determinadas pelo clima e pela hora do dia em que o julgamento aconteceu. Imaginemos então, que até mesmo o resultado de um jogo de futebol no dia anterior, sendo o juiz fanático pelo seu time, poderia influenciar na decisão de uma sentença condenatória por este juiz. Mas vamos passar para algo mais próximo da minha especialidade. Afinal não entendo quase nada de Direito. Ruídos aparecem em diversas ocasiões e, podem ser identificados em todas as profissões. Na Medicina, por exemplo, podem causar impactos incalculáveis nas vidas das pessoas. Podem significar vida ou morte. Diagnósticos e tratamentos podem variar se o mesmo indivíduo é atendido por médicos diferentes em um pronto socorro. Ou então, o mesmo médico pode decidir de formas diferentes influenciado por diversos fatores, que não são facilmente identificados. 

Nesse contexto, um estudo realizado em várias clínicas de Boston, avaliou 21.000 pacientes em consultas de pronto atendimento, envolvendo as decisões tomadas por 204 médicos. Os pesquisadores observaram que o número de prescrições de antibióticos subiu continuamente nas consultas que aconteceram no final da manhã e da tarde. Isso correspondeu a aproximadamente 5% a mais de pacientes recebendo antibióticos no final do período do atendimento em comparação com o início. Esse “ruído” foi atribuído ao cansaço dos médicos após vários atendimentos consecutivos. 

Enfim, tudo que depende do julgamento humano gera os famosos e indesejáveis ruídos. E por que isso acontece? Porque as pessoas são instáveis, diferentes umas das outras e, portanto, tomam decisões diferentes de outras pessoas, mesmo quando enfrentando situações exatamente iguais. Interessante pensar que não vivemos a vida imaginando outras maneiras de ver as coisas. Nós vemos uma coisa de cada vez, e é o que parece certo para nós, naquele momento. Aparentemente essa “individualidade” é a fonte do ruído.

E qual o impacto dos ruídos no nosso conhecimento, seja ele científico ou não, neste momento em que vivemos, quando a informação chega até nós de forma imediata, 24 horas por dia, 7 dias na semana? Não sei se compartilham do meu sentimento, mas em se tratando de informação, a sensação é de que os dias agora têm 36 horas e a semana 10 dias. É possível que nosso cérebro não esteja mudando muito, visto que mudanças evolucionárias precisam de muito mais tempo para acontecer. Mas, certamente, a velocidade com que as notícias chegam até nós e a mudança de interesse constante, tem influenciado a maneira como nossa mente trabalha. Será que isso pode fazer com que nossa mente se torne mais vulnerável e seja mais influenciada pelo mundo ao nosso redor do que era anteriormente ao aparecimento das mídias sociais? Será que a velocidade da informação está mudando como nós pensamos, como aceitamos as informações e como as repassamos? Como isso influenciaria o nosso julgamento dos fatos? Quanto de ruído o nosso julgamento geraria? E mais importante, como isso influenciaria nas decisões que tomamos?

Mais do que nunca, parece que essa cadeia de eventos, no frigir dos ovos, não tem muito a ver com um pensamento individual, mas com o pensamento e as opiniões de um grupo. E esse fato também não está exclusivamente relacionado com a era das mídias sociais e não começou agora. Faz parte da natureza humana. Somos, de certa forma, resultado do que nossa família pensa, do que nossos colegas de escola e trabalho pensam, do que nossos amigos pensam. Afinal acabamos nos aproximando das pessoas que têm pensamentos semelhantes aos nossos próprios. Talvez as pessoas não sofram mais ou menos influência do que sofriam anteriormente. Mas talvez o que tenha mudado substancialmente seja a fonte da influência e, com certeza, a velocidade com que isso tem acontecido. 

Não temos a menor dúvida de que as coisas estão evoluindo e estão melhorando. Hoje conseguimos identificar e minimizar ruídos. Mas temos que considerar que não é uma tarefa fácil. Isso porque o ser humano é caprichoso e poucos reconhecem que seus julgamentos e decisões podem ser arbitrárias. Mesmo quando somos avisados que nossas decisões estão sendo afetadas por ruídos, não gostamos de ser controlados por regras. Além disso, ruídos só podem ser identificados matematicamente, pois é a variabilidade das observações de dados gerados por várias pessoas. E, por incrível que pareça, a maioria das pessoas fica incomodada em pensar que suas decisões podem ser guiadas por dados estatísticos. A resistência pode aumentar ainda mais se trouxermos para a discussão a idéia da inteligência artificial. Parece inadmissível pensar que um software pode fazer um diagnóstico médico de maneira mais precisa que o próprio médico, ou dar uma sentença criminal de uma maneira mais justa que um juiz. Mas, se tirarmos da equação o julgamento humano, não existem ruídos, e, portanto, não existe variabilidade. Nesse sentido, se um programa é bom o suficiente para diagnosticar um determinado câncer, o paciente com câncer sempre será um paciente com aquele câncer, sem possibilidades de “erros” ou interpretações causadas por estes ruídos.

Mas, nos distanciando da inteligência artificial – que pode ser uma outra história – como minimizar os ruídos gerados pelas nossas próprias decisões? Considere que você pode pensar várias vezes antes de tomar uma decisão. Tente pensar na decisão que você tomaria sobre um determinado problema em situações diferentes. Pense por exemplo, se você tomaria a mesma decisão a alguns anos atrás, se tivesse filhos ou netos, se fosse mais jovem ou mais velho, se fosse de outro sexo ou gênero, se tivesse outra nacionalidade, se estivesse em uma posição social e cultural diferentes. Alguns podem pensar que todos esses “ses” não valem muito, pois as decisões são individuais e nós, seres humanos, somos por natureza imediatistas. Então, tente tomar uma decisão sobre um mesmo problema antes e depois do almoço, de manhã e depois de um dia de trabalho, ou simplesmente em uma segunda e uma sexta-feira. Talvez a decisão mais acertada, e com menos ruído, seja a média dos resultados que você gerou. E o mais importante, precisamos que nossas decisões sejam compatíveis com o nosso ideal de sociedade justa tendo a educação como guia.

 

1- Lis Ribeiro do Valle Antonelli é Pesquisadora em Saúde Pública e uma das líderes do Grupo de Pesquisa Biologia e Imunologia de Doenças Infecciosas e Parasitárias da Fiocruz Minas.

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Este texto integra uma parceria entre o Pensar a Educação, Pensar o Brasil 1822/2022 e o Instituto René Rachou (Fiocruz) para promover ações e reflexões em torno da Educação para a Saúde.

 

Para saber mais: 

Noise: A Flaw in Human Judgment. Daniel Kahneman, Olivier Sibony , Cass R. Sunstein. May 18, 2021. 

Linder JA, Doctor JN, Friedberg MW, et al., Time of day and the decision to prescribe antibiotics. JAMA Internal Medicine. Published online 6 October 2014. doi:10.1001/jamainternmed.2014.5225. 


Imagem de destaque: Pexels|TomSwinnen

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