Não queremos conflitos no Centenário! Educar a mocidade baiana e celebrar a pátria

Raquel Freire Bonfim*

Cultuar a ideia de um Brasil unificado, mais especialmente em torno da imagem de um país sem conflitos, mostrou-se um objetivo das agências da sociedade civil e de alguns representantes dos poderes públicos que se diziam identificados com uma ideologia nacionalista. Esses ideais deveriam penetrar as camadas da sociedade brasileira através de meios que educassem os cidadãos para a introjeção desse imaginário.

O desejo de construir a figura de uma pátria emblematicamente coesa esbarrava, porém, em conflitos que não se resolveram simplesmente quando proclamada a República. Em mensagem à Assembleia Legislativa da Bahia, em 1919, o governador do estado trata de uma questão deste tipo: o problema dos limites entre a Bahia e o Espírito Santo, mais especificamente, a qual jurisdição pertencia a cidade de São Matheus.

Moniz de Aragão reproduz, então, o telegrama do governador espírito-santense, Bernardino de Souza Monteiro, no qual este defende que a antiga vila elevada à cidade pertencia ao seu estado e tinha sua identidade ligada a ele, sobretudo após o processo de Independência. Souza Monteiro alega que São Matheus aderira à proposta independentista de Dom Pedro I, desde 1822, e que chegara a ser coagida, por forças paramilitares baianas, no longo processo que culmina no Dois de julho de 1823, a retroagir. Essa afirmativa deixa escapar a inferência de que a nação independente que se pretendia construir encontrava dissensões no território nacional, inclusive, entre populações muito próximas. É proposta uma avaliação para resolver a questão, com base em documentos do período monárquico, que delimitavam a extensão do estado da Bahia.

Moniz de Aragão não dá resposta definitiva ao caso alegando que aguardaria a realização do 6º Congresso Brasileiro de Geografia, promovido pela Liga de Defesa Nacional, que pretendia resolver aqueles problemas de limite territorial até o Centenário da Independência, em 1922. É possível compreender, a partir disto, a imagem que se pretendia construir para o Centenário: um Brasil coeso, sem problemas de fronteiras e pertencimentos.

Nas lacunas desse documento oficial, ainda se insinuam, por dedução, as populações que não opinaram sobre eles. A qual dos dois estados a cidade de São Matheus se sentia pertencer? A identidade dos habitantes daquele local foi forjada no processo de independência de modo contestatório ao plano do governo central ou não? Os governos da Bahia e do Espírito Santo se apontam os dedos dizendo, cada qual, que a adesão de São Matheus, a um ou outro lado, foi feita sob coação: se ela existiu ou não, quais interesses estavam em jogo nesta disputa?

Discutir a territorialidade, a identidade e as práticas sociais de uma população faz parte da reflexão em torno dos processos de independências. Nessa direção, uma nova discussão na imprensa nos leva a problematizar o sentido de Pátria para os baianos, assim como as experiências educativas em torno desse ideário.

Em 21 de julho de 1919, Sylvestre de Faria dirigiu uma carta ao periódico A Palavra, da cidade de Vitória da Conquista. A missiva recomendava que se criasse uma Liga de Instrucção Cívica, já que no lugar pouco se comemorava as datas nacionais – como 07 de setembro – sendo essencial “educar a mocidade” para que esta se tornasse patriótica e celebrasse a Nação. Ao reproduzir essa carta, em 08 de setembro de 1930, a revista Etc. toma como exitosa a proposta de Sylvestre de Faria, uma vez que, um grêmio denominado Castro Alves foi criado, em Vitória da Conquista, no bojo dessas considerações e com o objetivo de cultuar a “pátria amada” através das celebrações cívicas. Era preciso espalhar a iniciativa.

A necessidade de ensinar os mais jovens a celebrarem os símbolos do patriotismo evidencia um projeto de nacionalidade a ser construída, mas também a pouca representatividade que esse mesmo projeto possuía na experiência das pessoas. Como sentir-se ligado(a) a uma Nação que se constituiu excludente desde a formação do seu Estado Imperial? No século XIX, no processo de Independência, a maior parte das pessoas não foi incluída como cidadã e, no início do século XX, a maior parte da população, especialmente negra e indígena, continuava à margem da sociedade no que se referia a direitos políticos.

Ao contrário do que se pretendia ensinar à mocidade sobre a sua própria pátria e do que parece voltar a ser reafirmado nos últimos anos, o Brasil não é uno. O Brasil é múltiplo, diverso, fincado sobre uma constante apropriação do direito à terra e de um “dar de costas” aos conflitos nas fronteiras dos territórios.

Resta-nos refletir se queremos para o Bicentenário disputas territoriais ou territórios e identidades preservadas; se lutaremos por projetos educativos, que permitam pensar a pluralidade de identidade, as efetivas necessidades dos seus povos, de modo a respeitar, com ética, as alteridades, considerando as perspectivas de todos, todas, todes; ou se nos conformaremos, mais uma vez, com práticas e experiências forjadas, construídas por símbolos e ideários que não valorizam a nossa regionalidade e não respeitam a grandeza de nossos territórios, de nossas gentes, de nossas culturas.

*Graduanda em História pela Universidade Estadual de Santa Cruz/UESC. Bolsista de Iniciação a Docência (UESC). Membro do Grupo de Pesquisa em Política e História da Educação – GRUPPHED.


Imagem em destaque: Olavo Bilac, fundador da liga de Defesa Nacional. Falta de patriotismo. O MALHO Ed. 684 p.19, 1915.

 

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