Mulheres, trabalho acadêmico e pandemia

Laís Barbosa Patrocino*

O contexto de pandemia do coronavírus evidenciou e exacerbou muitas formas de desigualdades sociais. As desigualdades de gênero logo se manifestaram, dentre outras questões, pelo aumento da precarização das condições de trabalho relativos ao cuidado, historicamente realizado por mulheres.

O trabalho acadêmico, embora não diretamente ligado ao cuidado – e em um contexto economicamente devastador, ainda que sofra seus efeitos, se localiza em uma posição de privilégio – é uma profissão que, por essência, se dedica a compreender essas desigualdades, sobretudo a partir do avanço dos estudos de gênero. Nesse sentido, cabe pensar como se dá a questão da desigualdade de gênero no próprio trabalho acadêmico, tão dedicado a analisá-la. Além disso, como tantas outras ocupações, tem experimentado efeitos diretos do contexto de pandemia, seja institucionalmente ou na organização individual e coletiva do trabalho.

Iniciativas de promoção de um maior e mais igualitário envolvimento das mulheres na ciência, desde a Educação Básica, têm ocupado a agenda de órgãos internacionais e nacionais.

No Brasil, ainda persiste uma menor representatividade das mulheres no campo científico em geral. Essa diferença é acentuada nas áreas de ciências exatas, engenharias e computação, bem como nos níveis de carreiras mais elevados. A exclusão das mulheres negras é ainda maior.

A presença de mulheres negras no meio acadêmico diz respeito à própria qualidade da produção científica. A diversidade em sua composição é condição para uma maior diversidade de perspectivas, tão cara na produção do conhecimento bem como de políticas públicas.

Ao longo da trajetória das mulheres, ocorrem tanto a falta de reconhecimento delas na produção de conhecimento e situações de discriminação com variados graus de sutileza, como entraves de ordem prática ligados ao seu maior envolvimento no trabalho doméstico.

No contexto de pandemia e política de isolamento social, em que o teletrabalho passou a fazer parte da rotina de muitas famílias, sobrepondo o ambiente doméstico ao do trabalho formal, tais obstáculos de ordem prática ficaram evidentes. A imagem de mães de frente para o computador cercadas por um ambiente doméstico caótico tem retratado a realidade de mulheres em diversos países. O trabalho acadêmico, por sua vez, é marcado pela alta exigência de desempenho e competitividade.

No Brasil, iniciativas de enfrentamento às desigualdades de gênero no meio acadêmico já haviam proposto, por exemplo, a inclusão do período de licença maternidade no Currículo Lattes, de modo a excluir o momento posterior ao nascimento de crianças do cálculo de produtividade, em geral, comprometido nesse período.

Passado já quase um ano de pandemia, parece difícil sustentar esperanças iniciais de que os novos hábitos impostos pelas políticas sanitárias pudessem nos levar a estabelecer novos modos de vida, com tempos de trabalho mais justos e menos opressivos, com maior tempo para cuidar e desfrutar da vida doméstica, ou mesmo para o lazer e o ócio, cuja importância ainda é tão subestimada. Do contrário, não foram observadas iniciativas de redução de carga horária, ou mesmo de desaceleração do trabalho, mas apenas uma adaptação da mesma perspectiva produtivista para os meios digitais, o que tem representado uma sobrecarga ainda maior para as mulheres.

Com base nisso, proponho aqui dois pontos para reflexão, um sobre a complexidade do aumento da sobrecarga de trabalho entre as mulheres e outro sobre perspectivas de mudança desse cenário.

Muito se tem falado sobre a carga mental do trabalhado realizado por mulheres, relativo à organização e planejamento do trabalho doméstico, tão ou mais exaustivo que sua própria execução. Certamente esse trabalho aumenta com o exercício da maternidade ou com o cuidado de pessoas idosas ou deficientes, mas cabe mencionar que mesmo no crítico ambiente acadêmico, a referência da mulher como mãe ou cuidadora se fazem presentes quando o não exercício dessa função é usado como justificativa para destinar maior quantidade de trabalho às mulheres. Mas há ainda outro ponto de maior invisibilidade que se refere à carga emocional, questão que se intensifica no contexto de pandemia e de fragilização da saúde emocional. Também no meio acadêmico, ainda que marcado pela formalidade, se impõe demandas de ordem emocional nas relações de trabalho, grande parte delas, dirigido às mulheres.

Por fim, questiono se as políticas de promoção de igualdade no meio acadêmico devem ser dirigidas apenas às mulheres. O trabalho de cuidado não é uma questão em si, mas passa a ser um problema quando realizado apenas por mulheres. Nesse sentido, cabe refletirmos se são as mulheres que precisam de menos tempo de trabalho formal para se dedicarem às tarefas domésticas de cuidado ou se são os homens que precisam de incentivos institucionais para se envolverem mais nas funções de cuidado. Mas para chegar a esse questionamento, é preciso, antes, subverter outras lógicas, de trabalho e de vida.

* É doutoranda em saúde coletiva pela Fiocruz Minas e mestra em educação e cientista social pela UFMG. E-mail: laisbp89bh@gmail.com

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Este texto integra uma parceria entre o Pensar a Educação, Pensar o Brasil 1822/2022 e o Instituto René Rachou (Fiocruz) para promover ações e reflexões em torno da Educação para a Saúde.


Imagem de destaque: macrovector / Freepik

 

 

 

 

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