Minha rua tem… Sabiá – corredores da ambivalência

Ivane Laurete Perotti

Não quero contar Sabiá-laranjeira. Desejo cantá-lo. Não sei cantar. Desenhá-lo ou descrevê-lo, eu não daria conta. Falar de nosso relacionamento talvez seja uma possibilidade, pequena chance na dimensão do intransferível. 

Habita-me o sentimento desperto. Lava sonora em fogo amigo. Líquida. Cola de sentidos. Lugar dos afetos que vêm no rastro das estrelas. Urbanas. Humanas. Estrelas de amar. Chegou com as manhãs. O canto matinal reverberava sílabas desencontradas. Atravessadas por surdez e perdas. Aglutinadas nos olhos cavos. Seriam sem brilho não fosse o canto. Abria o dia com igual frase e ritmo. Curva de sons que rolavam o asfalto em direção às árvores debruçadas em muros. Às janelas fechadas de medo e separação. Separação que faz a beleza arder em dores. Divisão em tudo e nada. A beleza tórrida que cheira e baba. Que fere e sangra na injustificada segregação. Último refúgio da miserabilidade: incendeia o mapa do aceitável e se deposita, fantasmagórica, na bagagem da sociedade omissa.  

O primeiro bilhete de amor veio em rótulo sujo. Rasgado, com forte cheiro do líquido que habitara o vasilhame de origem, foi-me entregue junto com um sorriso de gengiva a gengiva. À porta de todas as saudades do humano e trivial, Sabiá-laranjeira cantou uma pecinha – como chamava a parte falada de seu repertório canoro. 

Sô… Sô… Sora… Sora, sora… Sô… Sô… 

A escola morava nele. Uma ideação da escola. Do conceito de estudar atrelado aos sonhos de liberdade, de nome, de letras enfileiradas, de números para contar no papel das esmolas. Esmolas da rua, não das pessoas. Esmolas como encontros com os rejeitos. As ruas conhecem a lei da troca. O que sobra ali, é riqueza aqui.

Sabiá-laranjeira nunca pediu. Orgulhava-se. Enchia o peito magro e fundo para dizer que vivia do encontrado. Pelos corredores de asfalto era mergulhador de coisas. As coisas mergulhavam nele com poética crueza. Poesia de pedaços, espaços do invisibilizado. Sabiá fazia as manhãs chegarem com a leveza do trino e o flagrante da miséria repetida. Sucumbi. 

Um tsunami de amor aportava dia sim, dia não, à cava de meus sentimentos. Invariavelmente, anunciava-se cantando. Vinha lento. A idade dizia que passara dos setenta tempos. Somada à miséria herdada, aos líquidos ardentes, às colas e outras fugas, à falsa alimentação, arrastava-se atrás de uma caixa com rodas de ferro. Não era madeira. Não era papelão. Contava, entre lábios, que a encontrara embaixo do viaduto… Jamais saberei qual. 

Sobre ela, a sua riqueza: um balde, uma vassoura, plásticos e papelão. Por debaixo dos plásticos, escondia o seu tesouro: folhas de papel escritas, riscadas, rasgadas, envelhecidas. Notas comerciais, panfletos. Em uma manhã leve e rica, sentados na calçada, ele pediu que eu lesse para ele a história de cada letra. Precisei aprender.  Eu aprendia, ele escutava. Eu lia, ele celebrava. Batia palmas em momentos que o meu entendimento não alcançava. 

Mas a alegria dele era o meu bilhete de amor. Lia para além das letras. Lia pelos seus olhos. Contava o que ele queria ouvir. “Leituras” que enfeitavam heróis de carne e osso, sempre vitoriosos sobre o mal. O mal resumia-se ao roubo de sua caixa de rodas, inevitavelmente. Era a história que ele antecipava ao pedido de leitura. Escolhia as folhas que me repassava, eu lia. Somava personagens que se apresentavam ao humor dele (em dias de chuva, Sabiá-laranjeira sentia medos, muitos medos e levava semanas para voltar ao sorriso livre), e o foco repetia-se. Foi assim que a leitura ganhou propósitos. Poucos para além de viver a felicidade que ele me entregava.

Sabiá-laranjeira tinha hábitos. Conheci alguns: o tempo dele não feria o meu. Não explorava as horas de leitura como se apenas isso tivéssemos para fazer. Passava certeiros minutos à calçada de nossos devaneios como se um relógio internalizado soasse o tempo. Então se despedia. O meu presente, a sua cantoria. Mesma letra, mesma melodia:

Sô… Sô… Sora… Sora, sora… Sô… Sô… 

Em uma manhã, ao lhe entregar o café com leite (seu grande fascínio pela mistura era uma riqueza à parte, talvez um dia eu possa contar), perguntei-lhe como sabia que eu era professora. Nunca me respondeu. Repetiu a música soprando a xícara quente. Vi os seus olhos lampejarem travessura. Embevecida, esqueci da pergunta. 

Quando os olhos de Sabiá-laranjeira escreviam novo texto, eu ardia em febre. Passava horas imersa na magia daquela comunicação. Desejava ler melhor para aportar um pouco mais naquele mundo por debaixo do cabelo sujo e desgrenhado. Durante um tempo, não assumi que só poderia entregar o que ele anunciava: leitura. 

Alcancei-lhe roupas, objetos de higiene pessoal, vitaminas, calçados. Nunca usou. Também não me contou o destino de meus remorsos. Pensei em tirá-lo das ruas. Mas os corredores de asfalto que o abriam para o mundo e o fechavam para a vida digna, eram tudo o que conhecia. De conversa em conversa, descobri que Sabiá já fora internado por distúrbios psiquiátricos, preso e por pouco sobrevivera a um espancamento. Apanhara à quase morte enquanto dormia sob as estrelas. Ele amava estrelas. Eu amava estrelas e amava Sabiá-laranjeira. 

Estou opaca desde ontem. Sabiá-laranjeira morreu de sede sob a chuva que o carregou.  Mais um resultado de nossa raquítica sociedade que se empanturra com silêncios e indiferença. Faço parte dela. Minha rua tem… Não tem. Minha rua não tem mais Sabiá-laranjeira. Gonçalves Dias amou as palmeiras, eu amei Sabiá!  Minha rua tem palmeiras, atrás de muros, cercas elétricas…


Imagem de destaque: Dario Sanches

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *