Militarização das escolas, a eliminação da alteridade

Carlos Alberto de Moraes¹

Danilo Carlos de Moraes²

Sob a égide de governos municipais, estaduais e federal, ganha ênfase um movimento que pretende impingir a militarização das escolas públicas. Nada de novo num país transversalizado historicamente pelo militarismo, seja na conquista e colonização, seja na manutenção da escravidão, ou, ainda, no belicismo que sufocou rebeliões e revoltas, subscrevendo a república e garantindo golpes e ditaduras. 

O contexto de uma sociedade conjunturalmente autoritária favorece a adoção de medidas que intentam impor a militarização, compactuando com o desmonte educacional e com a guerra cultural programados para nosso país: “escola sem partido”, negacionismo, revisionismo histórico, fake news, ensino domiciliar.

O que significa, precisamente, “militarização de escolas”? Significa que os governos podem repassar a gestão das escolas civis públicas para os militares. Ou seja, o governo pode operar diligências no sentido de autorizar que a gestão administrativa ou pedagógica ou disciplinar (ou mesmo administrativa, pedagógica e disciplinar) seja realizada pela polícia.

Os defensores da militarização trazem argumentos relacionados às questões da segurança, da ordem, da disciplina interna e dos elevados índices nas avaliações.

No entanto, se considerarmos a educação escolar como um direito humano fundamental consagrado na Constituição Federal e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, constatamos que todo o arcabouço que sustenta a militarização das escolas públicas contraria a legislação federal, pois fere a liberdade de aprender e ensinar, e nega o pluralismo de ideias, o pleno desenvolvimento de crianças e jovens, a formação crítico-reflexiva, a igualdade de condições para o acesso e permanência, a gestão democrática e a integração com a comunidade.

Quando a gestão educacional é assumida pelos militares, enraíza-se nela a mesma lógica que preside as corporações militares: a padronização, a homogeneização, o ajustamento.

Pensemos juntos: a escola pública é o espaço de todos os saberes, de todas as crenças, de todas as manifestações culturais, de todos os grupos étnico-raciais. É ali que interagem e dialogam as diversas identidades das crianças, das juventudes das periferias, do povo marginalizado e do povo que sofre diariamente as opressões do cotidiano.

Então, se a escola pública é o território do acolhimento da diversidade e da pluralidade cultural, militariza-la redundará no banimento das diferenças e dos diferentes, porque a lógica militar que engendra as relações interpessoais, as relações com o conhecimento e as relações com outras instituições sociais visa controlar mentes e corpos.

E o controle dos estudantes (de seus corpos e mentes) é exercido tal como nas corporações: uso obrigatório do fardamento, bater continência, caminhar marchando, proibição de gírias, de chicletes, batom e esmalte, corte de cabelo padronizado, rigidez dos horários, não-existência de grêmios estudantis, processo decisório verticalizado, castigos, coerção, severidade disciplinar.

A militarização é o eclipse total das identidades das crianças e das juventudes, do seu jeito cultural, do seu modo de vestir-se, dos seus gestos, das suas músicas, dos seus comportamentos, das suas convenções. Inexiste a liberdade de expressão ou de contestação.

Ao mesmo tempo, os debates constitutivos de uma sociedade democrática não encontram guarida para emergir. Uma neblina espessa oculta as discussões sobre gênero, orientação sexual, patriarcalismo, ditadura, machismo, feminicídio, racismo, luta de classes.

Assim, sem espaço para o contraditório, para o debate democrático, para a construção da cidadania, temos uma escola que deixa de ser “pública”. Sem espaço para os que não se adaptam às regras e ao comportamento desejado, temos uma escola que expulsa e que exclui. Sem espaço para os que manifestam dificuldades quanto à aprendizagem ou quanto ao modo de ensinar, temos uma escola que convoca os familiares e simplesmente transfere os estudantes. Sem espaço para as famílias mais pobres que não podem arcar com os valores de aquisição e manutenção do fardamento, temos uma escola que se notabiliza pela seletividade.

Nesse sentido, imprimindo em uma escola pública as marcas dos códigos militares, da forte hierarquia, da obediência cega, da passividade diante dos acontecimentos sociais, da meritocracia, da exclusão e da seletividade, não é de se admirar que os índices de avaliação sistêmica das escolas militarizadas sejam elevados. Tais índices não apontam para qualidade na educação. Não é possível conceber qualidade sem democracia. A qualidade é uma construção democrática e tem a ver com o direito à liberdade de expressão e de práticas pedagógicas.

A militarização das escolas públicas, na perspectiva do direito à educação, viola, portanto, princípios consagrados na legislação, anula subjetividades e se configura como um retrocesso no que diz respeito à autonomia das escolas.

 

1Professor e pedagogo, membro do Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Betim.

2Professor do Ensino Fundamental na rede municipal de Betim, professor do Ensino Médio na rede estadual, membro do Ebó-Núcleo Ativo de Resistência e Estudos Afro-Brasileiros.

 

Para saber mais:
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Acesse aqui

BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Lei de Diretrizes e Bases da Educação. Acesse aqui


Imagem de destaque: Jeso Carneiro

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