– vendo o mundo de olhos fechados –
“Pensem bem se isto é um homem que trabalha no meio do barro,
que não conhece paz,
que luta por um pedaço de pão,
que morre por um sim ou por um não […].
Pensem que isto aconteceu.”
( Primo Levi)
Sobravam-lhe dores. Recebidas de geração em geração, conhecia a direção dos que nascem desprovidos. Já habitara as cancelas da intransigência, os limites do invisível, já limpara o cuspe da indignidade. Fora difícil sempre. Antes dele e agora. Não ser visto gerava uma crosta de camuflagens contínuas e, ao mesmo tempo, de antevisão dos olhares externos. Via os outros. Os outros não o viam. Marcado pelas linhas do abandono, fora um pouco de todos e muito de nenhum. Ele não existia. Ele e os demais que se avolumavam sob a mesma crosta. Homens, mulheres e crianças desterradas de si mesmos.
Da calçada, via a movimentação alterar-se nos últimos dias. Do abrigo por debaixo do viaduto, ouvia as notícias maceradas de boca em boca. Algo como uma doença invadia a cidade. Pensou em um velho conhecido, tão velho que desistira de manter a vida no corpo sujo e maltratado. Fora-se, durante a última garrafada:
— Meu filho, você ainda verá os homens caírem. E cairão pelas próprias mãos.
Não dera atenção ao homem que dizia ver o mundo sem sair do lugar. As calçadas roubaram a vida que nunca fora dele e pagaram-no em infortúnios pelo nascimento não escolhido. Era um entre tantos. Mas era um que lhe servira de espelho nos momentos de maior sofrimento. Contava história pelas rachaduras dos pés. Quase não comia os rejeitos que lhe chegavam por mãos parceiras. Quando as vergonhas abaixo do umbigo incomodavam alguém, alguém outro arranjava-lhe farrapos para esconder a masculinidade abatida. Nunca aprendera a ler, mas escrevia o próprio nome em todo espaço de terra que encontrasse pela frente. Gostava de olhar as estrelas no firmamento e dizia conhecê-las. Embebedava-se para afogar os olhos de saudades não proferidas.
— Meu filho, somos gente! Está errado destruir a dignidade de um homem.
No início, ao conhecê-lo, pensava ser mais um daqueles homens exóticos que falam coisas incompreensíveis. Não demorou para entender que o velho tinha muitas lembranças e chorava sem derramar lágrimas. Sentira a sua falta quando a vida finalmente o deixara em paz. E isso aumentara o amargo sentimento de que todos ali, nas calçadas, nos bancos das praças, nas ruas de contramão, nos abrigos improvisados eram indesejados. Comer os restos deixados por outros era uma coisa, mas sentir na pele machucada que representava o lixo de uma sociedade inteira era complexo. Temiam-nos, enojavam-se deles, culpavam-nos, escorraçavam-nos, desabrigavam-nos de qualquer identidade. Ali, entre aqueles que a sociedade não queria ver, mas que produzia em larga escala, ouvira falar da doença que matava rápido. Seria uma saída? Morrer rápido poderia acabar com a fantasia dolorosa de esperar o dia amanhecer para repetir-se sem parar. Não havia novidades na vida que levavam, ou que os levava sem mapa de descarte.
Ao lado de seu cobertor roto e fétido, instalaram-se duas famílias. Cada qual com meninos pequenos, franzinos e quietos. Cedera a lata de cozinhar para uma delas. Não eram de falar. As crianças não brincavam, não corriam, nem exploravam o matagal acima de suas cabeças. Uma das mães parecia doente. Tossia muito. Respirava mal. O marido, às vezes, olhava para ela e desistia de insistir para que se sentasse. Ela tinha uma cor acinzentada, um corpo magro demais. Não havia o que partilhar. Na primeira noite, a mãe parou de respirar. E ele pode ver os olhos da tristeza vertendo líquidos em meio ao silêncio coroado por experiência que ele próprio não vivera. Nunca soube quem chamara os homens da segurança, mas ouviu a voz dos que são vistos:
— Esses vagabundos, deveriam ser enterrados de uma vez. Não querem nada com nada. Só pesam na conta do povo. São um peso para esta nação.
Povo? Ele era povo? As crianças eram povo? Os outros desabrigados eram povo?
Durante três dias, não teve muita sorte em levantar-se. Sentia-se fraco e cansado. Foi testemunha das crianças deitando para não mais levantar. Das duas famílias, só sobrara um. Um homem sem forças, derrotado pelos males que carregava.
— Estamos caindo um a um…
Feito moscas que apanham uma vida inteira ao se aproximarem do bolo, o bolo não lhes chegara. A miséria cavalgara por seus corpos e mentes desde o primeiro suspiro. Como seria o último? A tosse lhe tomara de pronto. Como dominós caindo um ao lado do outro, as ervas-daninhas iam cobrindo os espaços deixados em branco. O abrigo parecia mais vivo e isto era um engano. O abrigo estava sendo devastado por algo que desconheciam. Faltava-lhes tudo. Faltava-lhes a compreensão sobre tantas diferenças. Acostumaram-se a calar. Não seria agora que reclamariam. Uma casa, um leito, uma água quente para fazer um chá qualquer. Isso não lhes pertencia. (Continua)
Referência
VALENTE, Luize. Sonata em Auschwitz. Saída de Emergência: Porto Salvo, Portugal, 2020
Imagem de destaque: Priscila Paula